25 de novembro de 2017

Rameau: Pygmalion (Aparté, 2017)



Como escreveu Borges a propósito de um descendente de Pigmaleão, “Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva, trémula”. Aqui, acesa já a centelha da vida em si pelo archote de Cupido, ela diz: “Quem sou eu? Onde estou? O que é isto que penso?” O seu tom é algo factício, sonambúlico, glacial, até ao momento em que ganha total consciência e se sai em glissando com um fúlgido e sonoro “Céus! Estou extasiada; sinto o mais doce dos sabores ao olhar para ele”. Dir-se-ia a “sintética” Mia, da série “Humans”, no instante em que se liberta da escravatura da programação e com uma orgástica golfada de ar se torna a encontrar com o ser senciente que sempre foi. De Lily, de “Penny Dreadful” (essa coisa rara que é uma noiva de Frankenstein com direito a noite de núpcias), a Eliza, de “Totalmente Demais” (a tímida vendedora de flores que se transforma em top model), tem sido um motivo recorrente na ficção televisiva dos últimos anos, por vezes de modo enviesado, como aqui (ora por via de Mary Shelley, ora por intermédio de George Bernard Shaw), mas invariavelmente ambíguo.

Da mesma forma, hoje, diferentes ouvintes deste extraordinário acte de ballet de Jean-Philippe Rameau podem fazer associações distintas e pensar na robô Sophia, da Web Summit, relacionando uma frase dela (“A ideia que os robôs vão destruir a humanidade é apenas o medo que os humanos têm de si próprios”) com uma interrogação de Pigmaleão (“Conseguirei eu estar à altura das bênçãos que recebo?”) ou, por exemplo, em Neto de Moura, a assinar um acórdão num caso de violência doméstica sob o feitiço da jura de obediência feita pela Estátua a Pigmaleão e consequentemente a todo o patriarcado (“O meu maior desejo é agradar-vos/ Seguirei sempre a vossa lei”). São coisas incogitáveis para Rameau, nesta adaptação de um mito de “Metamorfoses”, de Ovídio, mas que bem podiam estar presentes na cabeça de Céline Scheen (Estátua), Cyrille Dubois (Pigmaleão) e demais Talens Lyriques caso vivessem em Portugal. Como a grande arte, uma interpretação para todo o sempre, com repercussão imediata.

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