Falávamos pelo telefone há coisa de três anos, eram
seis da manhã em Nova Iorque, e David Harrington, olhando pela janela do seu
quarto de hotel, viajava no tempo à medida que ia vendo aqui e ali a cidade a acordar
para uma fria madrugada de novembro: “Foi como um daqueles momentos em que
subitamente se acende uma lâmpada na nossa cabeça”, dizia, referindo-se à
ocasião em que se deu conta de que o mundo, tal como o conhecia, tinha como
limites as fronteiras de um “minúsculo ponto no mapa”, Viena. Discorria acerca
da sua experiência enquanto estudante de música clássica, na adolescência, mas
o que pretendia, mesmo, era tornar claro que a motivação para fundar o Kronos
Quartet em 1973 vinha daí, desse instante em que se pôs a olhar para o
mapa-múndi e quis saber como era a música de outros lugares. Foi o mote para
discutirmos alguns discos do grupo, entre os quais o controverso “Pieces of Africa”, de 1992, que lhe valeu acusações de “turismo musical”, “apropriação
cultural” ou pior, como se o Kronos, ao tocar peças africanas, tivesse pintado instrumentos
com cortiça queimada para parecer menos branco. Harrington riu-se, surpreendido
pela referência à técnica blackface das
trupes teatrais de oitocentos, mas logo se recompôs: “Se formos bem a ver, o maior
problema desse argumento é ocultar um princípio mais insidioso: que só
compositores de pele clara gozam da legitimidade necessária para recorrer ao
quarteto.”
Passados 25 anos, dir-se-ia notar-se ainda o efeito dessa
lógica corrosiva. A propósito desta ocasionalmente dilacerante colaboração do Kronos com o maliano Trio Da Kali (Fodé Lassana Diabaté, balafon, Mamadou Kouyaté, ngoni,
Hawa Diabaté, voz), por exemplo, fala-se da “colisão de dois mundos” (in Bandcamp) nem que seja para se concluir
que o resultado final ilude a binariedade. Lá está, o problema é outro: é
discutir-se estética quando se deve falar de ética. Porque nem que isso
implique colocá-lo a par dos temas da cimeira do G5 Sahel, o Kronos quer transportar
o seu público “para o cerne das grandes questões”. Só que o público tem que saber ir atrás dele.
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