Ao fim de umas semanas a jogar à macaca com o
calendário telefonei-lhe a avisar que havia ocorrido um imprevisto: o
jornalista não podia ir para a frente com a entrevista à hora marcada (estávamos
em 1998 e eu promovia por cá “Woman’s Day”, o seu segundo álbum na Gramavision).
Ron Miles não se importou muito e, agradecendo a cortesia, aproveitou para
fazer conversa. Perguntou pelo tempo em Lisboa – contou que em Denver, onde reside,
tinham já caído os primeiros nevões e a descrição da vista da sua janela trouxe-me
à ideia um corpo marcado por vitiligo, uma doença que se caracteriza pelo
aparecimento de áreas de despigmentação na pele. Depois falou-me acerca do discreto
Boulder Creative Music Ensemble ou de Bill Frisell – tinha gravado o invulgar “Quartet”
com o guitarrista e agora tinha sido Bill a devolver-lhe o favor. Modesto, não
procurou saber o que eu pensava do disco. Mas tinha andado a ouvir umas
antologias de Clifford Brown e Kenny Dorham e devo ter-me referido aos dois, ou
melhor, à impressão com que tinha ficado ao escutá-los: que, não obstante os
caroáveis melismas de ambos, o seu recurso a intervalos sofisticados não
prejudicava a fluidez no que tinham para dizer e que o fervor e a fleuma nas suas
trompetes conseguiam surgir em pontos inesperados. “Isso é interessante”,
comentou Miles. “Sabe que o Dorham era vocalista. Eu não sou, mas há certas qualidades
no canto que tento transferir para o meu instrumento, sem deixar de ter
presente uma coisa que o Ornette um dia me fez ver numa aula que tive com ele: que
não podemos partir para uma improvisação em grupo pensando saber o que vai
acontecer. E que aí tudo se torna possível.”
Quase vinte anos depois, não se
pode afirmar que Miles se tenha esquecido da lição. Quanto muito, a sua visão
do assunto ficou ainda mais panorâmica – uma espécie de credo que dá mostras de
ter vindo ao mundo para desacreditar os aforismos de um Thomas Carlyle,
digamos, e deixar patente que o progresso se dá mais pela ação do coletivo do
que do indivíduo. Consigo estão os estelares Brian Blade (bateria), Jason Moran
(piano), Thomas Morgan (contrabaixo) e Frisell, claro, mas também todos os que
lutaram contra a discriminação e a desigualdade (“I Am a Man” foi o lema dos funcionários
dos serviços de Higiene Urbana da cidade de Memphis durante a famosa greve de
1968 que culminou no assassinato de Martin Luther King, Jr.). Trata-se,
portanto, de uma belíssima reflexão sobre processos históricos e a construção
da individualidade sob perspetiva moral. Nem poderia ser de outra maneira: as
filhas de Ron chamam-se Honor e Justice.
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