Regressa Anderszewski ao relativo aconchego destes
concertos (trata-se da sua terceira incursão no terreno), que, como de costume,
dirige a partir do piano como um vicário de Mozart. Claro que prestando atenção
ao que faz durante os momentos menos solenes de um e outro, porventura por tão
bem identificar sinais cruzados, conto-do-vigário é igualmente uma expressão
que vem à cabeça: “Entendo os concertos para piano de Mozart como se tratasse
de música de câmara”, diz. “O piano, a orquestra e os instrumentos individuais
envolvem-se uns com os outros, dialogando continuamente. Ao mesmo tempo, são
como óperas ocultas: os temas e os motivos interagem, desenvolvendo as suas
narrativas, cada qual com a sua própria voz e carácter distinto. Mozart é, por
excelência, o compositor da ambiguidade – em que o mais luminoso surge entrelaçado
com a escuridão. Onde fica a luz, onde fica a sombra? Às vezes, não sei. E, no
entanto, é uma música tão cristalina. É um milagre.”
Dir-se-ia o fio condutor
da sua interpretação, capaz de colocar sucessivamente em contraste os mais
variados estados de espírito sem comprometer a estrutura de cada andamento, ora
conferindo importância à introspeção, ora isentando-se de toda e qualquer
responsabilidade perante esta música, que não aquela que terá que ver com a força
elástica pela qual os corpos retomam o seu estado natural quando livres.
Sinceramente está numa categoria à parte, e dizer que se situa, algures, entre
Perahia e Gilels parece demasiado restritivo (ou não restritivo o suficiente, se
pensarmos bem), não obstante dar mostras de ter herdado o mais caprichoso do
primeiro (que, por vezes, fazia esta música atravessar as fronteiras
estilísticas do período que a viu nascer) e o mais poético do segundo (que se
dedicou ao mundo interior de Mozart como Herbert Nitsch ao mergulho em apneia).
Na verdade, Anderszewski traz à memória o que disse uma
vez ao “El País”, quando explicava por que motivo se tinha mudado para Lisboa:
“É que aí encontras gente que aceita o fatalismo com a maior das
naturalidades.” Uma cidade com luz e sombra, como Mozart.
Sem comentários:
Enviar um comentário