12 de maio de 2018

Chet Baker “Portrait in Jazz by William Claxton” (Jazz Images, 2018)


Era noite cerrada e a casa estava escura. Não fazia ideia onde estava a mãe (a arrumar a cozinha, talvez), mas não se ouvia um pio. Ainda assim, não conseguia pegar no sono. Tinha percebido que o pai recebia gente na sala de estar e que tinha fechado a porta – o que nem era a primeira vez. Há muito que estava em pulgas para saber o que se passava lá dentro. Levantou-se da cama com cuidado, avançou devagar pelo corredor, aproximou-se com algum receio do buraco da fechadura e contou o que viu desta maneira: “O meu velho e os colegas dele estavam estendidos nas cadeiras, de olhos fechados. Adormeceram, pensei. Adormeceram e estão a ter uns sonhos estranhos, maravilhosos. A divisão estava cheia de fumo branco, de aroma intenso – quando me chegou ao nariz através da porta fiquei agoniado. Um dos homens estava com a cabeça para cima e de boca bem aberta, como que a aspirá-lo aos poucos. Estavam quase num estado de êxtase. A partir dessa noite, voltei a observar secretamente o meu pai e os seus amigos muitas vezes e fui ficando cada vez mais impressionado, cada vez mais assustado.” Sob o título “A Trompete e a Seringa”, este relato circulou na década de 60 pela imprensa sensacionalista norte-americana, quando poucos queriam saber já do seu autor. O subtítulo? “Confissões de Chet Baker”.

Se há coisa de que não se pode acusar Chet Baker é de ter sido um literato. Mas lendo-se esse artigo em que descreveu a hipotética origem da sua obsessão com drogas é impossível deixar de se pensar em “Entropia”, um conto de Thomas Pynchon publicado em 1960 na “Kenyon Review”, uma revista literária, em que os membros de um quarteto de jazz se munem de marijuana e se dedicam à experiência de tocar um tema do princípio ao fim sem produzir um único som, tentando inferir o que uns e outros estão a ouvir nas respetivas cabeças, em que tom, em que andamento, e que tipo de improvisações fazem. O seu modelo? O quarteto de Gerry Mulligan com Chet Baker. “Conseguíamos sempre antecipar o que é que o outro ia fazer”, disse Mulligan sobre a relação. Isto, quando a moderação emocional e dinâmica do som da trompete de Chet parecia um enigma criado para levar os seus admiradores a imaginar as razões pelas quais lhes seria vedado o acesso a sentimentos e reflexões a que desejavam aceder a todo o custo.

Na presente edição, no CD “Chet Baker-Gerry Mulligan Original Quartet”, também disponível individualmente e em LP (como todos os discos da caixa, aliás), fica bem retratado esse período em que Chet, à semelhança de Miles, parecia expressar-se num código de que só ele possuía a senha. Trata-se de gravações de 1952 e 1953 (envolvendo Bob Whitlock, Carson Smith, Chico Hamilton e Larry Bunker), ficando de fora as sessões de “Gerry Mulligan and his Ten-Tette” e as de “Lee Konitz Plays with the Gerry Mulligan Quartet”. Igualmente indispensável, aqui, é “Chet Baker & Russ Freeman Quartet”, que inclui as gravações do grupo em 1953 (com Smith e Bunker) mas também o prodigioso “Quartet: Russ Freeman Chet Baker”, de 1957 (com Leroy Vinnegar e Shelly Manne), em que Chet toca com uma entrega rara: solto, agressivo e a transbordar de intuição melódica. Este Chet, influenciado por Dizzy Gillespie, Kenny Dorham ou Clifford Brown, mas à frente deles todos nas preferências dos leitores da “Down Beat”, ouve-se ainda em “Chet Baker & Crew: The Forum Theatre Recordings”, que recupera os temas do LP homónimo de 1956 com um explosivo quinteto de neo-bop completado por Phil Urso, Bobby Timmons, Jimmy Bond e Peter Littman. Depois, claro, a coletânea abrange grandes sucessos de Baker como “Chet Baker & Strings”, de 1954, “Chet Baker Sings”, de 1954 e 1957 (quando foi no mercado relançado com extras) ou “Sings and Plays with Bud Shank, Russ Freeman and Strings”, de 1955 – satélites algo artificiais ao planeta do jazz. Como compensação, no CD “Strings & Ensemble”, este material mais inócuo possui como complemento “Chet Baker Sextet”, de 1954 (com Bob Brookmeyer, Shank, Smith, Manne e Freeman), “Chet Baker Ensemble”, do mesmo ano (com Herb Geller, Jack Montrose, Bob Gordon, Joe Mondragon e Manne), e parte de “Big Band”, de 1957, de que inexplicavelmente se excluem os temas com Conte Candoli, Frank Rosolino, Bill Perkins e Art Pepper. A expetativa era que surgissem no volume “Chet Baker & Art Pepper”, mas debalde – neste, está a sessão no Forum Theatre de julho de 1956, editada como “The Route”, e, com outra urgência, a ida a estúdio de agosto de 1956 que resultou em “Playboys”, com arranjos de Jimmy Heath. Destaque, ainda, para “Chet Baker in New York” (1958) e “Jazz at Ann Arbor” (1955). Já “For Lovers” traz algumas repetições e discos rotineiros como “It Could Happen to You” (1958) e “Chet” (1959), enquanto “My Funny Valentine” é absolutamente redundante no contexto desta antologia. 

Foi um período imortalizado pela câmara de William Claxton em capas para a Pacific Jazz ou fotos de promoção – em “Jazz Seen”, Claxton confessou ter descoberto o conceito de fotogenia ao ver aparecer do nada o rosto do trompetista na sua sala escura. Os discos deste “Portrait in Jazz” trazem fotos suas. As coisas podiam ter ficado por aí, mas, no caso de Chet, escorrega-se sempre do retrato para a caricatura: a caixa encerra com gravações em Roma e Milão, entre 1959 e 1962, entregues já à nostalgia, como “Chet Baker Sextet”, ou à música ligeira, como “Angel Eyes”, o que vai dar ao mesmo. Podia ter-se resolvido o assunto com o auspicioso “Chet is Back!”, mas é melhor assim, não fosse o caso de se criarem falsas esperanças: daí em diante, Chet levou uma existência peripatética, de pátria em pátria, de prisão em prisão, de pedra em pedra, de perda em perda, até ao dia em que lhe falhou o pé numa varanda do hotel Prins Hendrik, em Amesterdão. Foi numa sexta-feira treze. Faz amanhã 30 anos.

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