Se
acompanhasse um filme mudo ver-se-ia certamente uma cidade a ser devorada
pelas chamas, com gente desnorteada pelas ruas a guiar uma muda de roupa com uma
mão e uma criança desgrenhada com a outra enquanto tenta a todo o custo evitar as
guinadas dos carros dos bombeiros; a que se seguiria um plano picado da turba
revoltosa pelo paço, blindada por faixas de protesto em barricadas e erguendo
baionetas e bandeiras com a foice e o martelo à medida que, em contrapicado, de
tanto bater, um sino na torre de uma igreja fica com a boca parecida a “O
Grito”, de Munch; depois, incrédula, sem conseguir dar um passo que seja para
lá da soleira da porta, uma velhota tira por fim a mão do rosto e começa a
benzer-se ao reparar nos corpos que ficam estendidos no chão da praça quando cai
a noite e dispersa a multidão. É um conjunto de cenas perfeitamente capaz de
ter passado pela cabeça de Rachmaninoff quando, em 1917, como reação à
Revolução de Outubro, compôs “Prelúdio em Ré menor” (que só viria a ganhar edição
póstuma, em 1973), porventura a mais negra e pessimista das suas peças curtas
para piano, com uma linha sonora descendente e trágica a evocar uma lenta
marcha de condenados – ou algo pior ainda. Como de costume, não está incluído
nesta espécie de integral: como Ashkenazy, Hayroudinoff ou Osborne antes de si,
mas melhor do que todos eles, Lugansky fica-se pelo “Prelúdio em Dó sustenido
menor”, Op.3/2 (1892), pelos “Dez Prelúdios”, Op. 23 (1903), e pelos “Treze
Prelúdios”, Op. 32 (1910). Mas o arco narrativo que o pianista sugere é de tal modo bem conseguido
que, a espaços, ao longo destes 82 minutos, como uma fatalidade, se pressente a
sombra desse último prelúdio que Rachmaninoff viria a escrever antes de partir
em definitivo para o exílio e de se tornar, ele mesmo, uma sombra de si
próprio. Pois a verdade é que não há por aqui um momento que não dê mostras de
dever por inteiro ao destino. Lugansky havia já gravado o Op. 3/2 e o Op. 23 de
forma, até, mais virtuosística, mas a maneira em que equilibra, agora,
claridade e ambiguidade e subtileza e grandeza é insuperável.
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