Jordi Savall vem de lançar “In Excelsis Deo”,
consagrado a missas de Francesc Valls e Henry Desmaret do tempo da Guerra da
Sucessão Espanhola – a primeira acarinhada pelos apoiantes da Casa de Habsburgo
(e Valls foi Mestre de Capela da Catedral de Barcelona durante a regência de
Carlos, Arquiduque da Áustria), a segunda fruto da passagem de Desmaret pela
corte de Filipe V, em Madrid. Como de costume, é tudo imensamente trabalhoso.
Mas para um moralista, como Savall, há que tornar o passado significativo – e o
CD traz como complemento “El cant dels aucells”, “Catalunya triomfant” ou
“Catalunya en altre temps”, canções nada imunes àquele tipo de etnocentrismo
que Savall habitualmente denuncia mas que, agora, considera honrar a memória
“daqueles homens e daquelas mulheres que arriscando a sua vida e os seus bens
tiveram o grande mérito de defender a sua cultura e a sua liberdade”. No atual
quadro de crise política na Catalunha, cuja independência advoga, percebe-se a
quem se dirige.
Já noutra edição recente, “Venezia Millenaria”, aplica o
princípio da equidade: independentemente da queda do Império Bizantino, do
Saque de Constantinopla, dos efeitos desastrosos das Cruzadas, das tensões com
o Império Otomano ou da capitulação da República após a invasão das tropas
napoleónicas, desta música que aqui reúne parece resultar sempre o princípio do
mútuo reconhecimento das diferenças. É uma forma de pensamento histórico que aparenta
reforçar a contingência, a rutura ou a descontinuidade de modo a permitir,
apenas, a tomada de consciência de que a particularidade cultural é uma
construção. Daí a “Musica Nova” é um passo. No momento em que tantas portas
europeias se vêem reforçadas pela intolerância, Savall sublinha antes o que há
em comum na especificidade de cada cultura: com ecos de rebab beduíno, rabeca trovadoresca ou alaúde mourisco, trata-se de peças
renascentistas compostas para viola da gamba em Itália, Inglaterra, Alemanha, França
e Península Ibérica. Ao mesmo tempo, ao revisitar este repertório pelo qual começou
a ser conhecido, é uma forma de dizer que o seu projeto de vida nunca foi
outro: a música como uma ponte suspensa sobre as encruzilhadas do bem e do mal.
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