No
que parece um quarto esconso de uma modesta pensão na zona de Nova Iorque, logo
a abrir o filme, naquele seu característico tom cavo e enfisemático, atravessado
por dióxido de carbono e poluído por muitas mágoas, Dexter Gordon – ou melhor,
Dale Turner, o extraordinário composto dramático a que o músico deu corpo em “À
Volta da Meia-Noite” (Bertrand Tavernier, 1986) – despede-se de um velho amigo
dizendo-lhe que está de partida para Paris: “O que é que isso vai resolver?”,
pergunta o outro, “Não vai mudar a maneira como tocas”. Dale hesita, esboça um
sorriso reservado como quem receia que até a alegria lhe tirem, e responde do
modo mais convicto possível: “Não há olhares frios em Paris.” Podia estar a
falar por experiência própria, claro. Aliás, numa “Down Beat” de finais de
1976, numa altura em que se preparava para encarnar a personagem de Ulisses (apropriadamente,
o LP que viria a gravar no Village Vanguard antes do ano fechar chamar-se-ia
“Homecoming”), Dexter explica-se assim: “Fui para a Europa e vivi uns anos em
Paris. Mas na última década estabeleci-me em Copenhaga. É mais ou menos o meu
lar, hoje em dia. Pode dizer-se que me tornei uma espécie de dinamarquês, o que
é bom. Como é óbvio, aprendi muito. É outro estilo de vida, outra cultura,
outra língua. Gostei. Ainda gosto. Depois, naturalmente, não havia
discriminação racial, nem nada desse género. Além de que significa alguma coisa
ser artista na Europa. Somos tratados com muito respeito. É uma outra
mentalidade.”
Não
obstante o tanto que longe do seu país encontrou – apreço, admiração, ânimo,
inclusivamente audácia, para não falar já da família que constituiu –, Dexter
Gordon notabilizou-se exatamente por jamais reprimir as memórias americanas que
marinavam no som do seu instrumento. Ouvi-lo, então, e também, seria honrar
aquilo que de mais belo havia sobrevivido à ruína de vidas inteiras, a
materialização de um milagre, a forma de adorar o período em que o saxofone foi
marcado por Herschel Evans, Dick Wilson, Chu Berry, Charlie Parker, Wardell
Gray ou Lester Young, gente que nem à meia-idade chegou. Como não poderia
deixar de ser, seria ainda uma advertência quanto à futilidade de planear o
futuro, por exemplo. Mas igualmente, e incrementalmente, quanto a um facto que a
geração de Gordon logo intuiu: de que, mais cedo ou mais tarde, para o bem ou
para o mal, haveremos todos de sentir na pele o exílio. Por tudo isso, entre
muitas coisas mais, um solo de Gordon era ao mesmo tempo mediúnico e votivo, um
contínuo ato de condenação e absolvição, a tomada de consciência de que viver longe
de casa não quereria necessariamente dizer que não se pertencia a lugar nenhum.
Seja como for, Dexter voltou – e nesta edição, como bónus, surge ‘Old Folks’,
gravado em 1977, quando tinha regressado de vez aos EUA e deixado a um
continente de distância um dos melhores grupos com que havia tocado, que é precisamente
o que se escuta neste concerto de outubro de 1975 em Tóquio, com Kenny Drew,
Niels-Henning Orsted Pedersen e Albert “Tootie” Heath agradecendo aos mortos
todo o espaço que deixaram aos vivos.
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