Reta final da 35ª edição do Jazz em
Agosto, número que, por sinal, agradará àquele a que se consagra a sua
programação, John Zorn, alguém que jamais recuou quando confrontado com o
sincretismo ocultista. No tarô egípcio, por exemplo (e a capa de um dos discos de Zorn, “From
Silence to Sorcery”, é ilustrada com cartas do célebre baralho de Salvador
Dali), o 35º arcano promete alarmes, consternações, acontecimentos imprevistos,
enquanto uma leitura mais corrente – trata-se, afinal, do 2 de paus – aponta
para todo o tipo de descobertas a quem abandonar a sua zona de conforto e se
abrir a novas experiências. Já o 35º anjo cabalístico (na discografia de Zorn,
pense-se em “Zohar” ou na série “Book of Angels”), o da reconciliação, costuma
ser invocado para aludir à importância da lealdade em matéria de heranças. Apropriadamente,
numa das suas mais reveladoras entrevistas – à NPR, a rádio pública
norte-americana, a 3 de setembro de 2013, no dia a seguir ao do seu sexagésimo
aniversário, portanto –, Zorn disse assim: “Claro que uma pessoa não se pode
sentar e compor 300 peças num período de três meses e achar que o está a fazer
sem algum tipo de ajuda. (…) Sinto que há mensagens [que recebemos]. Que há
anjos. Que há uma herança e uma energia. E que a podemos canalizar. (…) E eu
não conseguiria fazer nada disso sem estes músicos. Porque, para mim, a música
é sobre pessoas. Não é sobre sons. É sobre pessoas.” Mesmo que – ou
preferencialmente que – isso signifique colocá-las em situações de algum desconforto.
Nessa perspetiva, há uns anos, um dos músicos do seu círculo confidenciou-me o
seguinte: “Passar da minha música para a do Zorn é como ir deitar-me, adormecer
enquanto humano e acordar como inseto.” Talvez por isso tantas das suas
criações dêem mostras de vibrar com frequências do inconsciente, ainda que
pareçam derivar de processos de síntese relativamente simples, quase sempre
envolvendo o medo. Desafios recorrentes na sua obra, a que, hoje, às 18h30, no
Auditório 2 da Gulbenkian, tratarão de dar resposta os Trigger (Will Greene,
Simon Hanes e Aaron Edgcomb), espécie de power
trio da atonalidade. Já pelas 21h30, no Anfiteatro ao Ar Livre, haverá
sessão dupla: com Craig Taborn, primeiro, e o trio de Brian Marsella (com
Trevor Dunn e Kenny Wollesen), depois, passando em revista algumas das
“Bagatelles”, temas que trazem à memória que o stride piano e o dodecafonismo foram contemporâneos. Amanhã, nos
mesmos horários, Julian Lage e Gyan Riley [na foto, com Zorn], em guitarra acústica, tocarão
“Midsummer Moons”, bucolicamente passível de se associar aos ritos do
solstício, e a fechar o festival subirão ao palco os Secret Chiefs 3 para
interpretar peças de extração levantina, de Zorn, cujo frutado aroma, nos
narizes certos, se confunde com o cheiro da carne humana em decomposição.
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