Há coisa de 30 anos, à revista Wire, John Zorn
jurava a pés juntos que só era convidado para tocar em festivais de jazz “porque
os organizadores precisam de alguém para agitar as águas e gerar controvérsia”.
Interessado que estava em elevar o transtorno de personalidade a modalidade
olímpica, não lhe passava pela cabeça que se referia já ao futuro habitat dos bizarros organismos que
engendrava – “algo que recolhe elementos do rock, do blues, da música clássica,
do folclore, e que se reúne filmicamente”, dizia. De facto, na altura, na sua
mesinha de cabeceira, no topo de uma pilha de livros consagrados ao oculto, devia
estar amiúde o “Frankenstein”, de Mary Shelley, a par de “On Film Editing”, de
Edward Dmytryk. Aliás, o que mais atraía na sua produção era exatamente essa
sua capacidade em ignorar limites, cuja raiz, presumia, eram as muitas horas
passadas em frente ao televisor em miúdo – antes de “Poltergeist”, claro. Desde
então, as suas técnicas e ideias parecem cada vez mais começar onde as dos outros
terminam, numa zona de fronteira que se entende ter crescido dentro de si,
porventura sem que o soubesse, e pela qual contrabandeia a maior das emoções na
cultura popular: mostrar-nos tudo o que poderíamos ser. Porventura em honra
dessa sua dimensão evangelista, e, quiçá, por nunca ter sacrificado uma posição
periférica em termos artísticos, a 35ª edição do Jazz em Agosto está-lhe
inteiramente subordinada. Distante daquela formação de pústulas hormonal que
lhe marcou a adolescência criativa, trata-se, agora, de um conjunto de
opúsculos devidamente amadurecido, embora jamais divorciado da delinquência e
nos quais uma espécie de aura messiânica não chega por completo a disfarçar a
centelha da megalomania. Verdade seja dita, parte do interesse desta extraordinária
série de concertos será assistir à reação dos instrumentistas ao culto ctónico que
a Gulbenkian promove em torno de Zorn e que tem como principal expoente a
sessão dupla de hoje à noite, com o quarteto de Mary Halvorson seguido de Masada
(Zorn, Dave Douglas, Greg Cohen e Joey Baron) às voltas com a escala menor
melódica. Amanhã há um recital de Barbara Hannigan (19h30, com Stephen Gosling
ao piano) e uma atuação de Zorn em órgão de tubos (às 21h30, com Ikue Mori no laptop); segunda (21h30), o quarteto de
John Medeski, Kenny Wollesen, Trevor Dunn e Joey Baron e o trio de Marc Ribot,
Dunn e Kenny Grohowski tocam “Bagatelles”, fulgurantes peças atonais escritas
por Zorn em 2015; depois, destaque-se o quarteto de Kris Davis e o trio de John
Medeski (quarta, 21h30), o trio de Mori, Craig Taborn e Jim Black (quinta,
21h30) e o quarteto de Matt Hollenberg, Julian Lage, Dunn e Grohowski (sexta,
21h30).
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