Tudo
é tão excecional em John Coltrane que até o título deste seu “álbum perdido”
aponta ao paradoxo. Ou, pelo menos, a certos escritos de Deleuze e Guattari em
que se namora uma categoria temporal que simultaneamente “recua e avança em
duas direções, (…) rumo ao futuro e rumo ao passado”, objeto eterno, diziam os
filósofos, de uma dupla pergunta: “O que irá acontecer? O que acaba de
acontecer?” Uma espécie de síntese definitiva para o que implica explorar este
prodigioso “Both Directions at Once”. É o que digo a Ravi Coltrane, pelo
telefone, há coisa de três semanas, ao falarmos sobre o disco. “Completamente. A
minha primeira reação ao escutar esta música foi exatamente essa: o que acaba
de acontecer? E é nessa perspetiva que interpreto o título, embora o contexto
da sua formulação original permita outras leituras, claro”, comenta o filho de
John e Alice Coltrane, coprodutor da presente edição. Ravi refere-se a uma
conversa entre o seu pai e Wayne Shorter, em finais de 50, quando discutiam
música descontraidamente e ensaiavam sem compromisso. Conforme se pode ler em
“Footprints: The Life and Work of Wayne Shorter”, de Michelle Mercer, “eles diziam
que gostariam de conseguir falar de trás para a frente, de começar uma frase a
meio e de a completar seguindo em duas direções ao mesmo tempo.” Menos que para
o cerne da linguística, para não dizer, já, da lógica ou da estética, Ravi
transfere o sentido da asserção para o da cronologia: “Quem comparar o que aqui
está com aquilo que o meu pai vinha de fazer em quarteto [quiçá com o
referencial “My Favorite Things” em mente] e principalmente com o que viria a
fazer de seguida [digamos, em “A Love Supreme”] encontra a peça que faltava no
seu puzzle.”
No
mercado, em 1962-63 há mais discos de John Coltrane do que sardinhas no Santo
António. Para sua consternação, tinham os respetivos contratos expirado, a
Prestige lança “Dakar”, “Stardust”, “Standard Coltrane” e “Kenny Burrell &
John Coltrane” (a partir de sessões de 1957 e 1958) e a Atlantic atrasa a
chegada aos escaparates de “Olé Coltrane” e da compilação “Coltrane Plays the
Blues”. Sem demora, para a Impulse, prepara “Africa/Brass”, “Coltrane” e,
quando aspirava a navegá-las todas, que não messianicamente a andar sobre elas,
um controverso divisor de águas: “Live! At the Village Vanguard”. Em termos editoriais,
sem culpa sua, é um período marcado pelo oportunismo, com o público incapaz de
perceber se o que ouve é fruto da virtude ou do vício, se face à tradição Coltrane
é devoto ou descrente – polémica que levou a “Down Beat” a publicar em abril de
1962 um artigo a que chamou “John Coltrane e Eric Dolphy respondem aos críticos
de jazz”. Não admira que o seu produtor na Impulse, Bob Thiele, tenha nas suas
memórias admitido que discos como “Duke Ellington & John Coltrane”,
“Ballads” e “John Coltrane with Johnny Hartman” (igualmente de 1963) eram também
consequência de críticas negativas: “Decidimos pôr este pessoal na linha de uma
vez por todas e provar que o John era um artista completo.” Isto é, que podia
dar um cunho pessoal a material mais acessível e relativamente canónico. Ravi ri-se
à invocação da frase: “É um pensamento perfeitamente capaz de ter passado pela
cabeça de Thiele, mas o meu pai não apreciou menos cada uma dessas suas conceções
por isso. Aliás, nem este álbum perdido resulta da energia despendida em torno
desses discos.” De facto, se há coisa de que John Coltrane não se podia queixar
era de que a Impulse não acompanhava o seu poder de gerar uma música
significativa atrás da outra: antes do ano terminar viria a gravar “Impressions”,
“Live at Birdland” e “Newport ‘63”.
“O
meu pai foi imensamente prolífico”, anui Ravi. “O que não quer dizer que se
prestarmos bem atenção a cada um dos seus discos, em retrospetiva, eles não nos
pareçam absolutamente necessários – de modo quase inequívoco, diria. Mas se me
perguntassem se precisaríamos mesmo de ouvir mais da sua música captada em 63,
eu provavelmente diria que… Bom, eu diria sempre que sim, pois sou parte
interessada, mas deixe-me colocar as coisas de outra maneira. Se me
perguntassem que música de 63 do meu pai eu mais desejaria ouvir, seria, sem
margem de dúvida, a desta mítica sessão, com o quarteto clássico [com McCoy
Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones] no mais alto grau das suas capacidades
expressivas.” Como tantos outros, parte interessada ou não, Ravi sabia há muito
da existência desta sessão gravada a 6 de março de 1963 – no diário do seu
estúdio, por sinal, Rudy Van Gelder tê-la-á diligentemente anotado. Mas a
verdade é que o seu conteúdo havia sido dado por perdido desde inícios de 70, por
aí, quando a ABC, que detinha participações maioritárias na Impulse, se pôs a cortar
em custos de armazém. Então, ao que tudo indica, a ordem foi para que se
descartasse toda e qualquer bobina considerada supérflua, uma atitude coerente
com um dos fundamentos da indústria fonográfica: não vale a pena malhar em
ferro frio. “O meu pai avançava tão depressa que muitas vezes era a Impulse que
tinha de correr atrás dele. Basta contar o número de vezes que foi a estúdio e
ver o manancial de informação que deixou. Com efeito, quando se destruíram as
bobinas originais ele já estava morto há uma boa meia dúzia de anos.”
Inclusivamente, na altura, relembro-lhe eu, a Impulse mantinha na gaveta álbuns
inteiros do quarteto, como “Transition”, “Sun Ship” ou “First Meditations”,
editados, apenas, entre 1970 e 1977. “Precisamente. Não faltavam registos. E
convém não esquecermos que se havia instalado a noção de que a música do meu
pai teria de certa forma transcendido o foro do quarteto, passado para outra
dimensão.” Vendo assim as coisas, este “Both Directions at Once” estará para a
fase intermédia da sua carreira como “Stellar Regions”, descoberto em 1994,
está para a fase final. “Fomos abençoados”, conclui Ravi.
Com
frequência, após cada sessão, Coltrane saía do estúdio de Van Gelder com bobinas
debaixo do braço – cópias em bruto de cada take,
que levava para casa para ouvir e eventualmente considerar para edição. Com
cada matriz devidamente identificada pelo seu engenheiro de som e salvaguardada
no arquivo da sua editora, John, uma vez terminado cada projeto, passava
adiante e não lhes atribuía importância, a ponto de as ter deixado para trás com
outros objetos pessoais quando se separou de Naima, a sua primeira mulher. Nunca
se soube ao certo em que consistia esse espólio familiar, mas em fevereiro de
2005 deu-se um vislumbre dos seus principais atributos quando a leiloeira
Guernsey’s anunciou um “Jazz Auction” que, de Coltrane, incluía saxofones, vídeos
caseiros, partituras manuscritas, cartas e um lote com 35 bobinas. Alertada, a
Verve, que controla atualmente a atividade da Impulse, logo solicitou a remoção
dos fonogramas – afinal, alegava, provinham da época em que Coltrane gravava em
exclusivo para a marca, e a sua propriedade jamais havia sido transferida. O
caso não era difícil de provar, e a Guernsey’s foi forçada a admitir a
ilegitimidade da venda pública das bobinas, que prontamente retirou do
catálogo. “Desde aí temos todos trabalhado em conjunto”, sublinha Ravi. “Os
herdeiros de Naima, do meu pai e a Verve. E a última reedição de ‘A Love
Supreme’, em 2015, incluía como bónus a versão em sexteto de ‘Acknowledgement’ com
proveniência nesse acervo. Mas descobrir um álbum na íntegra foi um milagre.”
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