Arranca o “Jazz no Parque”, em Serralves, onde, diz
Rui Eduardo Paes (o programador), se vão apresentar “três projetos que
contrariam a separação entre o que se considera mais acessível e popular e o
que é remetido para o chamado experimentalismo”, gente que pratica “músicas que
fazem bater o pé e abanar a cabeça sem que tal implique uma menor preocupação
com as questões estéticas ou uma atitude menos inconformista”: refere-se ao sexteto
liderado pelo guitarrista Mané Fernandes (hoje, como sempre, às 18h), ao
quinteto da baterista Lucía Martínez (dia 14) e aos Naked Wolf (21), em que
pontifica Luc Ex. O objetivo, então, será desfazer de uma vez por todas aquela velha
e nada lícita divisão de conceitos que Paes caracteriza desta forma: “Uma
especial atenção ao balanço rítmico significa frequentemente, e logo à partida,
que não há uma atitude de inovação de linguagens ou vice-versa.” O que está
errado, claro, conforme provou com frequência a figura que domina a agenda
desta semana: o baterista Billy Hart, que dá quatro concertos com Joshua
Redman, Ben Street e Ethan Iverson entre nós (dia 10 na Casa da Música, dias 11
e 12 no Hot Club e dia 13 no “Funchal Jazz”).
Aliás, esta questão do ritmo traz
à memória uma entrevista que Iverson fez há uns anos a Hart (e que publicou no
seu site) e na qual teve a extrema delicadeza
de não perguntar quase nada. Pelo contrário, conversavam e o pianista contentava-se
por sugerir uns tópicos e por fazer uns comentários em jeito de aparte. Pode
dizer-se que falavam como tocavam, com Hart a superar os limites da imaginação
e a transportar Iverson para uma era de feitos inacreditáveis no jazz e na
vida. “Sei que, na altura, quando comecei a aparecer, o mais importante era
encontrar o [meu] próprio som”, dizia. “Se não o [meu] estilo, pelo menos o [meu]
som.” Depois, como quem sabe ter testemunhado milagres, falava de Louis Hayes
ou de Tony Williams: “O Tony conhecia bem [o andamento da] segunda linha [das
marchas de Nova Orleães]. A tradução direta dos ritmos africanos para a tarola.”
Não admira que, a certa altura, Hart se refira ao jazz desta maneira: “Esse
universo imenso que é como um grande avanço sociológico demonstrado pela
música.”
Até porque muito daquilo que implica de mais significativo dá mostras
de desafiar a comunicação verbal: “O que mais me surpreendeu na banda do
Coltrane foi o Elvin Jones. Ia vê-lo todas as noites [em que o grupo de
Coltrane atuou no Bohemian Caverns, em Washington, onde Hart vivia]. No fim,
(…) nem me conseguia mexer, como se estivesse preso em cimento. Ficava a olhar
para o Elvin. Chamou-me, e disse: Não me peças para te mostrar seja o que for,
porque [se isto pudesse ser ensinado] seríamos todos como o Max Roach.” Ora aí
está alguém que Hart considera “próximo da fonte”, que trouxe para o jazz uma
espécie de verdade elementar a nível rítmico: “O ritmo é tão importante quanto
a harmonia na história da evolução humana. Mas na Europa estabeleceu-se um
vínculo tão profundo entre harmonia e emoção que parecia não haver outro modo de
fazer as coisas”, concluía. Claro que, hoje, tudo mudou. Basta prestar atenção a
alguns dos outros nomes que vão ao festival madeirense: a Vijay Iyer (que
tocará com o seu estelar sexteto dia 13, às 21h30, antes de Hart subir a
palco), ao trio de Dave Holland, Chris Potter e Zakir Hussain (dia 14, às 21h30)
e ao de Jason Moran (14; 23h). E, como é óbvio, à antiga banda de Iverson, os
Bad Plus (em que entretanto se viu substituído por Orrin Evans), que toca dia
11 no Teatro Municipal da Guarda inserida no “Guarda in Jazz” e dia 12 no Gnration,
em Braga, no “Julho é de Jazz”, trazendo consigo o redundantemente intitulado
“Never Stop II”. Nesse mesmo ciclo, dia 13, toca Pulverize the Sound (de Peter
Evans, Tim Dahl e Mike Pride), uma daquelas formações em que assenta que nem
uma luva outra frase de Hart tirada da entrevista a Iverson: “Tenho tanta fé na
tradição que acredito numa solução lógica até mesmo para a música mais fora.”
Elementar.
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