Quando há dois anos e picos – embora a palavra salpicos
seja mais apropriada – revelou, com “Water”, um programa em que foi levada a
meditar sobre o “cruzamento das dimensões decorativas e místicas da água
através do seu poder transformador e das suas funções regeneradoras”, era óbvio
que Hélène Grimaud escorregava para um abismo metafórico, desejosa de se soltar
do passado (nessa medida, lembrava Miss X, referida por Jung em “Os Arquétipos
e o Inconsciente Coletivo”, que de modo a descrever a situação de impasse em
que se encontrava pintou uma aguarela de si mesma à beira-mar com a parte
inferior do corpo presa em pedregulhos, como que apanhada pela cintura numa
torrente de lava). Mesmo a fechar o disco, quando interpretava “La Cathédrale
engloutie”, de Debussy, o medo maior era que, uma vez desaparecida nas
profundezas da retórica, Hélène não mais conseguisse voltar à superfície.
Agora, neste “Memory”, quando explica que lhe interessa explorar um “estado
consciente comum a todos” e nos diz que “cada uma destas peças serve para
evocar atmosferas de frágeis reflexos, uma miragem do que foi e do que podia
ter sido” no que, enquanto seres humanos, diz respeito a “necessidades,
motivações e desejos”, não esquecendo – ufa – que “a memória é como uma
inexplicável e incontrolável força que espelha de forma pungente (…) aquilo que
nos vai no âmago”, torna-se por demais evidente que, desta feita, está já a
saltar em queda livre num depressivo precipício concetual. Escutando-a, na
realidade, o que vem efetivamente à memória é Romy Schneider a cantar ‘La
Chanson d’Hélène’, no filme “As Coisas da Vida”: “E o meu quarto está
encerrado/ Aqui, o sol não entra mais”. Sobram as recordações, claro, e
sucessivas refeições à base de madalenas: no caso, Hélène tenta extrair o
açúcar da introspecção a Silvestrov (em cintilantes “Bagatelas”), Debussy (numas
“Ao Luar” e “A Mais que Lenta” apropriadamente atmosféricas), Chopin (uma valsa
ou uma mazurca sem a vertigem da poesia) e Satie (“Cnossianas”, com um tétrico rubato). Mais etérea, ela, só quando trocar
o piano por uma harpa eólica.
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