Há,
hoje, muitas formas de caracterizar Antonio Vivaldi. Uma delas, porventura algo
dissimulada, será retroceder – andando para trás como o comboio de Chelas, como
antigamente se dizia – até ao momento em que J. S. Bach se dedicou às
transcrições de “L’estro armonico”: nomeadamente à do “Concerto Nº 10”, em Si
menor, cuja altura modificou, descendo um grau, para Lá menor, e cuja extravagância
solista transpôs, e elevou, de quatro violinos para quatro cravos – uma “intrigante
luta estilística entre o apetite alemão pela complexidade e a apetência italiana
pela lucidez”, conforme assinalou Christopher Hogwood. A referência não é
inocente, como é óbvio: não fosse o revivalismo do século XIX em torno da obra
de Bach e sabe-se lá o que teria conseguido rebocar o revolucionário arcaísmo
de Vivaldi para o século XX. Nessa medida, a certa altura, estávamos todos como
“O Menino Selvagem”, de François Truffaut (1970), cujo despertar para a
consciência de si e do mundo foi feito ao som do “Concerto para Flautim”, RV
443. Aliás, adaptando as palavras do maestro e cravista inglês, enquanto Vivaldi foi sendo redescoberto e reavaliado ia sobretudo ilustrando o desejo de
velocidade que distinguia a sociedade da era moderna - e a tal “luta
estilística” poderia agora descrever os anúncios da BMW ao som de “As Quatro
Estações”.
Talvez como reação a isso, há 30 anos, quando gravou estas “Sonatas
para Violoncelo”, com Christophe Coin como solista, tenha Hogwood optado por
mostrar um Vivaldi menos exuberante, mais introspetivo, sem aquele frenesi que,
na partitura, de tão apressadas, levava as notas a tropeçar nas linhas do
compasso. Ora, aqui, Jean-Guihen Queyras (o baixo contínuo é assegurado por
Michael Behringer, em cravo e órgão, Lee Santana, na tiorba, e Christoph
Dangel, ao violoncelo) parece devolver as sonatas ao seu estado primitivo,
acentuando-lhes cor e contraste sem comprometer uma elegância arquitetural de
conjunto, com tempos rápidos, então, particularmente vivos e vigorosos e com a
típica volubilidade de um bailado. Tudo é tangível e posto em relevo, tudo
refulge e se enleva até se tornar incorpóreo e elementar – água, terra, fogo e
ar a dançar na voragem dos séculos.
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