Conta Daniele Roccato, em notas de apresentação:
“Numa chamada de Cuernavaca, em setembro de 2010, o Stefano deu-me a terrível
notícia de que sofria de esclerose lateral amiotrófica em estado avançado e que
[por isso] já não conseguia tocar contrabaixo. A sua voz revelava uma determinação
extraordinária e pressenti que desejava aproveitar o tempo que lhe restava a
passar ideias para o papel.” Roccato fez as malas, partiu para o México e
encontrou o colega e amigo a trabalhar em “Ottetto”, uma obra que sintetizava aquilo
que ao longo de décadas fez pelo instrumento a que havia dedicado a vida e que
transformaria numa espécie de “herança espiritual”. Stefano residia numa
“esplêndida casa, cercada de vegetação”. Passava os dias no pátio acompanhado pela
esperança, por papagaios e opossuns. Ao pequeno-almoço, o seu convidado
geralmente tocava-lhe Bach. Depois, pela manhã, estudava e compunha qualquer
coisa. Da parte da tarde reviam em conjunto certos aspectos técnicos da peça.
“Ao anoitecer,” prossegue Daniele, “púnhamo-nos a escutar atentamente o meio em
nosso redor, a transcrever o canto dos pássaros tropicais, a modular os sons espectrais
dos insetos”. Tudo isso, como é óbvio, palmilha a partitura de “Ottetto” (para
oito contrabaixos; obra central neste CD), coberta que está com as impressões
digitais de milípedes e centípedes, escaravelhos e escorpiões, parasitas que
escorregam pela sua superfície, que a atravessam e lhe colam as páginas com escamas.
Nem poderia ser de outra maneira: como um naturalista, Stefano Scodanibbio (1956-2012)
foi sempre hábil a deslocar a atenção que recaía sobre o que quer que fizesse do
panorâmico para o específico sem que isso comprometesse, trivializasse e
sumariasse os mistérios da criação – ao invés, adensava-os, trazendo à memória Alexander
von Humboldt, o explorador que viu o mundo como um grande organismo vivo e que postulou
uma reação à natureza baseada em sensações e emoções (conforme enunciado em
carta a Goethe) e que em finais do século dezoito apelidou Cuernavaca de “a cidade
da eterna primavera” (e em “Six Duos” Scodanibbio tem uma peça intitulada “Humboldt”).
Mas, acima de tudo, como tinha feito no magnífico “Voyage That Never Ends”, invoca
aqui a Cuernavaca de “Debaixo do Vulcão”, de Malcolm Lowry, aquele romance que,
como defendeu o seu autor, tem que ver com “a luta que o espírito humano trava
quando ascende ao seu verdadeiro fim” e com “as forças que o obrigam a assustar-se
consigo próprio” – isto, disse-o Lowry quando morava na Calle de Humboldt, pois
claro. O destino é mesmo assim. Scodanibbio sabia-o bem.
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