29 de dezembro de 2018

Scodanibbio: Alisei (ECM, 2018)

Conta Daniele Roccato, em notas de apresentação: “Numa chamada de Cuernavaca, em setembro de 2010, o Stefano deu-me a terrível notícia de que sofria de esclerose lateral amiotrófica em estado avançado e que [por isso] já não conseguia tocar contrabaixo. A sua voz revelava uma determinação extraordinária e pressenti que desejava aproveitar o tempo que lhe restava a passar ideias para o papel.” Roccato fez as malas, partiu para o México e encontrou o colega e amigo a trabalhar em “Ottetto”, uma obra que sintetizava aquilo que ao longo de décadas fez pelo instrumento a que havia dedicado a vida e que transformaria numa espécie de “herança espiritual”. Stefano residia numa “esplêndida casa, cercada de vegetação”. Passava os dias no pátio acompanhado pela esperança, por papagaios e opossuns. Ao pequeno-almoço, o seu convidado geralmente tocava-lhe Bach. Depois, pela manhã, estudava e compunha qualquer coisa. Da parte da tarde reviam em conjunto certos aspectos técnicos da peça. “Ao anoitecer,” prossegue Daniele, “púnhamo-nos a escutar atentamente o meio em nosso redor, a transcrever o canto dos pássaros tropicais, a modular os sons espectrais dos insetos”. Tudo isso, como é óbvio, palmilha a partitura de “Ottetto” (para oito contrabaixos; obra central neste CD), coberta que está com as impressões digitais de milípedes e centípedes, escaravelhos e escorpiões, parasitas que escorregam pela sua superfície, que a atravessam e lhe colam as páginas com escamas.

Nem poderia ser de outra maneira: como um naturalista, Stefano Scodanibbio (1956-2012) foi sempre hábil a deslocar a atenção que recaía sobre o que quer que fizesse do panorâmico para o específico sem que isso comprometesse, trivializasse e sumariasse os mistérios da criação – ao invés, adensava-os, trazendo à memória Alexander von Humboldt, o explorador que viu o mundo como um grande organismo vivo e que postulou uma reação à natureza baseada em sensações e emoções (conforme enunciado em carta a Goethe) e que em finais do século dezoito apelidou Cuernavaca de “a cidade da eterna primavera” (e em “Six Duos” Scodanibbio tem uma peça intitulada “Humboldt”). Mas, acima de tudo, como tinha feito no magnífico “Voyage That Never Ends”, invoca aqui a Cuernavaca de “Debaixo do Vulcão”, de Malcolm Lowry, aquele romance que, como defendeu o seu autor, tem que ver com “a luta que o espírito humano trava quando ascende ao seu verdadeiro fim” e com “as forças que o obrigam a assustar-se consigo próprio” – isto, disse-o Lowry quando morava na Calle de Humboldt, pois claro. O destino é mesmo assim. Scodanibbio sabia-o bem.

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