Mal
começa, “Message to our Folks” vê-se envolto em volutas de fumo ao tratar de
descrever o concerto do Art Ensemble of Chicago (AEC) no Festival de Blues e
Jazz de Ann Arbor, em setembro de 1972. Queimam-se incensos no proscénio, membros
do quinteto fazem olorosos turíbulos dos seus instrumentos e, nem por acaso, logo
a abrir, explodem num ataque de tosse convulsa que toma a audiência de assalto.
“Enquanto o Art Ensemble se move em palco tocando sinetas e entoando cânticos”,
prossegue Paul Steinbeck nessa biografia do conjunto, “o público deixa-se maravilhar
pelas suas indumentárias: pelo casaco com lapelas de seda e pelo chapéu de
maquinista de Lester Bowie; pelas túnicas de Malachi Favors e Don Moye; pelo
uniforme de artes marciais de Joseph Jarman; pelo hábito de Roscoe Mitchell.” Quem
os vê sente-se de tal forma extasiado que Favors associa a ocasião a um
sacramento: dito e feito, ficaria para a história como “Bap-tizum” (Atlantic,
1973).
Era
uma reação muito diferente daquela a que o AEC se tinha habituado: de facto, no
exílio a que se impôs quando emigrou para Paris, em maio de 1969, o assalto de
que a propósito do grupo se falava era mais literal do que sensorial. “Atenção
ao modo em que o Art Ensemble lhe vai ao bolso”, anunciava um folheto relativo
a uma data na capital francesa: “Eles batem, roubam e despem quem os vê e põem toda
a gente a correr para casa nua e de rabinho entre as pernas a chamar pela mãezinha”,
pode ler-se em “A Power Stronger Than Itself: The AACM and American
Experimental Music”, de George E. Lewis. Não só na arte, ensaiava-se um período
de transformação sistemática, de radical reorientação de prioridades e contínua
insurreição: todo o conceito era posto do avesso, todo o ideal disputado, todo o
formalismo denunciado, todo o protocolo de rutura imediatamente adotado, toda a
herança criativa prontamente recusada. Esta era a banda de ‘Jazz Death?’, um
tema de “Congliptious” (Nessa, 1968): a que traduzia em espetáculos o
indecifrável “espaço multidimensional” mencionado por Barthes em “A Morte do
Autor”. Em reportagem, jornalistas de “Jazz Hot” e “Jazz Magazine” faziam o
relato de um “psicodrama ambíguo e violento” e de “altares de tortura e
sacrifício” e o “Nouvel Observateur” descortinava uma “escultura viva”. Na
mesma altura em que Beuys produzia “escultura social” e se comparava a um xamã,
isto levou ingénuos intelectuais parisienses que dormiam com o Livrinho
Vermelho na mesa-de-cabeceira a escalpelar heraldicamente o brasão do grupo –
“Great Black Music - Ancient to the Future” – à luz do que liam em “Arqueologia
do Saber” (Foucault), “Gramatologia” (Derrida) ou “Mitológicas” (Lévi-Strauss).
Mas,
na Europa, havia igualmente quem entendesse de outra maneira o estatuto
marginal do coletivo. Conforme explica na introdução ao livro de 300 páginas
que acompanha esta edição, Manfred Eicher, o fundador da ECM, achava que o AEC propunha
“um novo modelo para música de câmara improvisada, inaugurando-lhe mais um capítulo
após o impacto sísmico de Coltrane, Ornette ou Cecil Taylor”. Teria embrião em
teatrais atuações ao vivo, é certo, não obstante a mais-valia gerada em discos
lançados pelas gaulesas Pathé, BYG ou America entre 1969 e 1971 (como “People
in Sorrow”, “Les Stances à Sophie”, acabado de reeditar pela Soul Jazz,
“Message to our Folks” ou “Phase One”) – e talvez por isso, aliás, em virtude
do quão avesso se revelava às condições laboratoriais de estúdio, sugira Bill
Shoemaker em “Jazz in the Seventies” que o AEC parecia a “última banda do mundo
que a ECM pudesse vir um dia a gravar”. Mas veio, como é óbvio, colocando no
mercado “Nice Guys”, “Full Force”, “Urban Bushmen” e “The Third Decade” entre
1979 e 1984 e, depois, já com o AEC reduzido a trio, “Tribute to Lester” em
2003. Está tudo nesta caixa, além dos outros álbuns do catálogo da ECM em que
até à data se incluíram os seus membros: quatro discos a solo de Bowie e outros
tantos de Mitchell; “Divine Love”, de Leo Smith (a obra-prima da coleção), e
“New Directions”, de Jack DeJohnette, em que Bowie entra; “Made in Chicago”,
também de DeJohnette, e “Boustrophedon”, de Evan Parker, em que Mitchell
participa.
Eicher falava em abstrato, mas poderia estar a
referir-se ao AEC quando em “Horizons Touched” disse: “Quem é sério em relação
à cultura posiciona-se na periferia.” Ou seja, não seria ele a assombrar em
exclusivo a ação do AEC com o espectro do nacionalismo negro norte-americano.
Para mais quando ouvia Don Moye, em entrevista a “Modern Drummer”, declarar que
o AEC “pensava na música como um espaço sagrado no qual ressoavam todos os
elementos da existência”. A contribuição de Eicher terá sido precisamente essa:
tornar esse espaço eminentemente dúctil. A ponto de, agora, num depoimento
reproduzido em notas de apresentação, Craig Taborn insinuar que as melodias do
AEC davam mostras de “atravessar um meio ambiente específico, uma paisagem palpável
e a fervilhar de vida”, que tinham uma “aura única”. O que traz à memória que,
em 1989, numa conversa reproduzida no livreto da compilação “ECM New Series”,
Eicher dizia-se “fascinado pela aura do espaço, pelas ondas sonoras que fazem
um tom efetivamente ressoar”. Tão pouco capaz de se dissociar da sua linhagem
teórica como os críticos franceses do pós-Maio de 1968, Eicher passava por um
ventríloquo que tivesse em cima do joelho “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade
Técnica”, de Walter Benjamin: “Aura”, definia o filósofo, “é a aparição única
de uma coisa distante, por mais perto que esteja”. Ou “Ancient to the Future”.
Por entre as muitas emancipações que o AEC articulou na aura do jazz, então, fica
a que, por vezes, para a despertar basta um apito, um guizo, um gongo ou uma
campainha – por outras, como resumiu Jarman na contracapa de “Urban Bushmen”, é
preciso focar a espécie inteira na única coisa que realmente interessa: “A
dança de estar aqui”. Nunca tão bem quanto nestes discos.
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