15 de dezembro de 2018

“The Art Ensemble of Chicago and Associated Ensembles” (ECM, 2018)


Mal começa, “Message to our Folks” vê-se envolto em volutas de fumo ao tratar de descrever o concerto do Art Ensemble of Chicago (AEC) no Festival de Blues e Jazz de Ann Arbor, em setembro de 1972. Queimam-se incensos no proscénio, membros do quinteto fazem olorosos turíbulos dos seus instrumentos e, nem por acaso, logo a abrir, explodem num ataque de tosse convulsa que toma a audiência de assalto. “Enquanto o Art Ensemble se move em palco tocando sinetas e entoando cânticos”, prossegue Paul Steinbeck nessa biografia do conjunto, “o público deixa-se maravilhar pelas suas indumentárias: pelo casaco com lapelas de seda e pelo chapéu de maquinista de Lester Bowie; pelas túnicas de Malachi Favors e Don Moye; pelo uniforme de artes marciais de Joseph Jarman; pelo hábito de Roscoe Mitchell.” Quem os vê sente-se de tal forma extasiado que Favors associa a ocasião a um sacramento: dito e feito, ficaria para a história como “Bap-tizum” (Atlantic, 1973).

Era uma reação muito diferente daquela a que o AEC se tinha habituado: de facto, no exílio a que se impôs quando emigrou para Paris, em maio de 1969, o assalto de que a propósito do grupo se falava era mais literal do que sensorial. “Atenção ao modo em que o Art Ensemble lhe vai ao bolso”, anunciava um folheto relativo a uma data na capital francesa: “Eles batem, roubam e despem quem os vê e põem toda a gente a correr para casa nua e de rabinho entre as pernas a chamar pela mãezinha”, pode ler-se em “A Power Stronger Than Itself: The AACM and American Experimental Music”, de George E. Lewis. Não só na arte, ensaiava-se um período de transformação sistemática, de radical reorientação de prioridades e contínua insurreição: todo o conceito era posto do avesso, todo o ideal disputado, todo o formalismo denunciado, todo o protocolo de rutura imediatamente adotado, toda a herança criativa prontamente recusada. Esta era a banda de ‘Jazz Death?’, um tema de “Congliptious” (Nessa, 1968): a que traduzia em espetáculos o indecifrável “espaço multidimensional” mencionado por Barthes em “A Morte do Autor”. Em reportagem, jornalistas de “Jazz Hot” e “Jazz Magazine” faziam o relato de um “psicodrama ambíguo e violento” e de “altares de tortura e sacrifício” e o “Nouvel Observateur” descortinava uma “escultura viva”. Na mesma altura em que Beuys produzia “escultura social” e se comparava a um xamã, isto levou ingénuos intelectuais parisienses que dormiam com o Livrinho Vermelho na mesa-de-cabeceira a escalpelar heraldicamente o brasão do grupo – “Great Black Music - Ancient to the Future” – à luz do que liam em “Arqueologia do Saber” (Foucault), “Gramatologia” (Derrida) ou “Mitológicas” (Lévi-Strauss).

Mas, na Europa, havia igualmente quem entendesse de outra maneira o estatuto marginal do coletivo. Conforme explica na introdução ao livro de 300 páginas que acompanha esta edição, Manfred Eicher, o fundador da ECM, achava que o AEC propunha “um novo modelo para música de câmara improvisada, inaugurando-lhe mais um capítulo após o impacto sísmico de Coltrane, Ornette ou Cecil Taylor”. Teria embrião em teatrais atuações ao vivo, é certo, não obstante a mais-valia gerada em discos lançados pelas gaulesas Pathé, BYG ou America entre 1969 e 1971 (como “People in Sorrow”, “Les Stances à Sophie”, acabado de reeditar pela Soul Jazz, “Message to our Folks” ou “Phase One”) – e talvez por isso, aliás, em virtude do quão avesso se revelava às condições laboratoriais de estúdio, sugira Bill Shoemaker em “Jazz in the Seventies” que o AEC parecia a “última banda do mundo que a ECM pudesse vir um dia a gravar”. Mas veio, como é óbvio, colocando no mercado “Nice Guys”, “Full Force”, “Urban Bushmen” e “The Third Decade” entre 1979 e 1984 e, depois, já com o AEC reduzido a trio, “Tribute to Lester” em 2003. Está tudo nesta caixa, além dos outros álbuns do catálogo da ECM em que até à data se incluíram os seus membros: quatro discos a solo de Bowie e outros tantos de Mitchell; “Divine Love”, de Leo Smith (a obra-prima da coleção), e “New Directions”, de Jack DeJohnette, em que Bowie entra; “Made in Chicago”, também de DeJohnette, e “Boustrophedon”, de Evan Parker, em que Mitchell participa. 

Eicher falava em abstrato, mas poderia estar a referir-se ao AEC quando em “Horizons Touched” disse: “Quem é sério em relação à cultura posiciona-se na periferia.” Ou seja, não seria ele a assombrar em exclusivo a ação do AEC com o espectro do nacionalismo negro norte-americano. Para mais quando ouvia Don Moye, em entrevista a “Modern Drummer”, declarar que o AEC “pensava na música como um espaço sagrado no qual ressoavam todos os elementos da existência”. A contribuição de Eicher terá sido precisamente essa: tornar esse espaço eminentemente dúctil. A ponto de, agora, num depoimento reproduzido em notas de apresentação, Craig Taborn insinuar que as melodias do AEC davam mostras de “atravessar um meio ambiente específico, uma paisagem palpável e a fervilhar de vida”, que tinham uma “aura única”. O que traz à memória que, em 1989, numa conversa reproduzida no livreto da compilação “ECM New Series”, Eicher dizia-se “fascinado pela aura do espaço, pelas ondas sonoras que fazem um tom efetivamente ressoar”. Tão pouco capaz de se dissociar da sua linhagem teórica como os críticos franceses do pós-Maio de 1968, Eicher passava por um ventríloquo que tivesse em cima do joelho “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”, de Walter Benjamin: “Aura”, definia o filósofo, “é a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”. Ou “Ancient to the Future”. Por entre as muitas emancipações que o AEC articulou na aura do jazz, então, fica a que, por vezes, para a despertar basta um apito, um guizo, um gongo ou uma campainha – por outras, como resumiu Jarman na contracapa de “Urban Bushmen”, é preciso focar a espécie inteira na única coisa que realmente interessa: “A dança de estar aqui”. Nunca tão bem quanto nestes discos.

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