Se Savall tivesse real sentido do dramático, teria começado a contar
esta história pelo seu fim, na segunda metade do século catorze. Pelas últimas
palavras de um Battuta praticamente exânime e já esquecido, proferidas num
pátio de Fez tingido de azul enquanto observava no céu os vultos negros dos
estorninhos como se fossem emissários do além. Então, tal como a personagem de
Rutger Hauer em “Blade Runner”, falar-nos-ia de todas as coisas incríveis que
viu: de viúvas de inexcedível bondade, na Índia, que se ofereciam ao fogo após
a morte dos maridos, tapadas por véus de seda e enfeitadas com joias, cercadas
de incenso e por um cortejo de suplicantes que lhe transmitia mensagens para
entes queridos há muito desaparecidos e ao qual elas respondiam afirmativamente
antes de se sacrificarem numa pira; dos treze portões de bronze da catedral de
Aya Sufiya (Santa Sofia), em Constantinopla (Istambul), feita com materiais
retirados às Sete Maravilhas do Mundo, revestida a mármores verdes e amarelos
que refletem o olhar de quem os mira e o desviam dos milhares de monges que por
lá vivem, alguns deles descendentes dos doze apóstolos; de iogues em transe,
que se erguiam e sustentavam no ar à altura da cabeça dele sem nada visível que
os suspendesse; de hipopótamos, hienas, rinocerontes e elefantes, um deles,
albino, com um rubi do tamanho de uma mão na testa; das 100 escravas gregas,
turcas e nubianas de túnicas imaculadamente brancas, estendidas em redor de uma
piscina, na Anatólia, cada qual com uma taça de ouro recheada de passas ou com
uma travessa de prata coberta de cerejas na mão, prontas a saciar os desejos das
nobres que as observavam a partir de otomanas cravejadas de pedras preciosas; de
um homem santo do subcontinente que interrompia jejuns de 40 dias com um
simples feijão e que previa o futuro; de escravos de facas afiadas, em Malaca,
que cortavam o próprio pescoço em sinal de devoção aos seus proprietários.
Enfim, como no filme dizia o outro, de tudo o que estivesse prestes a perder-se
no tempo, como lágrimas na chuva. Mas, embora, aqui, não idealize outra coisa
que não uma banda sonora, é possível que Savall, formado que foi na madraça da
interpretação historicamente informada, achasse este dispositivo narrativo mais
factício do que factual. Ainda assim, mesmo numa versão “Lonely Planet” da
coisa, com um programa destes, nunca esteve tão próximo de promover essoutra
prática por inventar que se poderia apelidar de ‘interpretação historicamente
encantada’.
Possui como mérito maior, aliás, munir com um arsenal de “ruídos, sons,
doces melodias”, “mil instrumentos” e vozes, como lhe chamaria o Calibã, de
Shakespeare, um objeto – o livro “Um presente àqueles que
contemplam as maravilhas das cidades e as maravilhas de viajar”, ou “As Viagens
de Ibn Battuta” – em que se dá pela sua ausência. Nessa perspetiva, este relato
de Battuta é exemplificativo: “Veio até nós um emissário [de Atabek Afrasiyab,
na atual província iraniana do Cuzistão] acompanhado de músicos carregados de
instrumentos, para os quais se virou e disse: ‘Toquem, para que estes pobres
viandantes, nossos irmãos, dancem e cantem e dirijam orações ao filho do
sultão.’ A que respondi: ‘Eu e os meus associados pouco sabemos de música, e muito
menos de dança, mas podemos orar.’” Não seja por isso: Savall e os seus
convidados tratam, agora, de lhes organizar humildemente a playlist do
Spotify. Assim, em correspondência a algumas das mais famosas paragens desse
antepassado da autora de “Comer, Rezar, Amar” (Elizabeth Gilbert) e, já agora,
de qualquer autor de literatura de viagens que se preze (de Marrocos ao Mali, do
Cairo a Meca, de Gaza a Jerusalém, de Damasco à Turquia, de Omã à Pérsia, do
Cazaquistão ao Paquistão, da Índia ao Sri Lanka, de Sumatra à China, isto é, do
que resultou de um périplo de 120.000 km em 30 anos, suficiente para mandar
qualquer carro para a revisão), eis um conjunto de extasiantes improvisos
árabes e turcos ao alaúde, de lamentos ortodoxos, de melismas nilóticos, cantos
otomanos, baladas búlgaras, modinhas mediterrânicas do medievo e música cortesã
do extremo oriente, quase sempre comandado por recitativos algo caprichosos,
para não dizer pior. Um exemplo: na chegada a Meca são descritas emoções que
nada diferem das de qualquer peregrino a cumprir o Haje; eu teria optado por
mandar ler isto em voz alta: “As mequenses são de uma beleza incomparável, liberais
no uso de aromas a ponto de se ficarem a sentir os seus eflúvios após a sua
passagem” – “Hoo-ah”, exclamaria Pacino. Outro: “Os habitantes das Maldivas são
inclinados à piedade e professam uma fé sincera”, escuta-se, a propósito da
estada de Battuta no arquipélago; como é óbvio, um moralista como Savall nunca
citaria uma frase destas: “Têm produtos com efeitos incomparáveis na vida
sexual. Eu mesmo tive quatro mulheres e várias amantes ao longo do ano e meio
que lá vivi e era capaz de visitá-las diariamente ou de passar a noite com quem
de direito” – 650 anos antes do Viagra!
Não
obstante as tendências hagiográficas do maestro catalão, tudo isto para sublinhar
o estranho caso de Ibn Battuta: alguém – ao contrário do seu imediato
predecessor europeu, Marco Polo – incapaz de disfarçar indignação, irritação,
intolerância, vulgaridade, valentia e volúpia perante um mundo em que luta
permanentemente o que existe com o que está à beira da extinção. Nisso, em nada
mudou.
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