9 de fevereiro de 2019

Ibn Battuta: Le Voyageur de l’Islam (Alia Vox, 2018)


Se Savall tivesse real sentido do dramático, teria começado a contar esta história pelo seu fim, na segunda metade do século catorze. Pelas últimas palavras de um Battuta praticamente exânime e já esquecido, proferidas num pátio de Fez tingido de azul enquanto observava no céu os vultos negros dos estorninhos como se fossem emissários do além. Então, tal como a personagem de Rutger Hauer em “Blade Runner”, falar-nos-ia de todas as coisas incríveis que viu: de viúvas de inexcedível bondade, na Índia, que se ofereciam ao fogo após a morte dos maridos, tapadas por véus de seda e enfeitadas com joias, cercadas de incenso e por um cortejo de suplicantes que lhe transmitia mensagens para entes queridos há muito desaparecidos e ao qual elas respondiam afirmativamente antes de se sacrificarem numa pira; dos treze portões de bronze da catedral de Aya Sufiya (Santa Sofia), em Constantinopla (Istambul), feita com materiais retirados às Sete Maravilhas do Mundo, revestida a mármores verdes e amarelos que refletem o olhar de quem os mira e o desviam dos milhares de monges que por lá vivem, alguns deles descendentes dos doze apóstolos; de iogues em transe, que se erguiam e sustentavam no ar à altura da cabeça dele sem nada visível que os suspendesse; de hipopótamos, hienas, rinocerontes e elefantes, um deles, albino, com um rubi do tamanho de uma mão na testa; das 100 escravas gregas, turcas e nubianas de túnicas imaculadamente brancas, estendidas em redor de uma piscina, na Anatólia, cada qual com uma taça de ouro recheada de passas ou com uma travessa de prata coberta de cerejas na mão, prontas a saciar os desejos das nobres que as observavam a partir de otomanas cravejadas de pedras preciosas; de um homem santo do subcontinente que interrompia jejuns de 40 dias com um simples feijão e que previa o futuro; de escravos de facas afiadas, em Malaca, que cortavam o próprio pescoço em sinal de devoção aos seus proprietários. Enfim, como no filme dizia o outro, de tudo o que estivesse prestes a perder-se no tempo, como lágrimas na chuva. Mas, embora, aqui, não idealize outra coisa que não uma banda sonora, é possível que Savall, formado que foi na madraça da interpretação historicamente informada, achasse este dispositivo narrativo mais factício do que factual. Ainda assim, mesmo numa versão “Lonely Planet” da coisa, com um programa destes, nunca esteve tão próximo de promover essoutra prática por inventar que se poderia apelidar de ‘interpretação historicamente encantada’.

Possui como mérito maior, aliás, munir com um arsenal de “ruídos, sons, doces melodias”, “mil instrumentos” e vozes, como lhe chamaria o Calibã, de Shakespeare, um objeto – o livro “Um presente àqueles que contemplam as maravilhas das cidades e as maravilhas de viajar”, ou “As Viagens de Ibn Battuta” – em que se dá pela sua ausência. Nessa perspetiva, este relato de Battuta é exemplificativo: “Veio até nós um emissário [de Atabek Afrasiyab, na atual província iraniana do Cuzistão] acompanhado de músicos carregados de instrumentos, para os quais se virou e disse: ‘Toquem, para que estes pobres viandantes, nossos irmãos, dancem e cantem e dirijam orações ao filho do sultão.’ A que respondi: ‘Eu e os meus associados pouco sabemos de música, e muito menos de dança, mas podemos orar.’” Não seja por isso: Savall e os seus convidados tratam, agora, de lhes organizar humildemente a playlist do Spotify. Assim, em correspondência a algumas das mais famosas paragens desse antepassado da autora de “Comer, Rezar, Amar” (Elizabeth Gilbert) e, já agora, de qualquer autor de literatura de viagens que se preze (de Marrocos ao Mali, do Cairo a Meca, de Gaza a Jerusalém, de Damasco à Turquia, de Omã à Pérsia, do Cazaquistão ao Paquistão, da Índia ao Sri Lanka, de Sumatra à China, isto é, do que resultou de um périplo de 120.000 km em 30 anos, suficiente para mandar qualquer carro para a revisão), eis um conjunto de extasiantes improvisos árabes e turcos ao alaúde, de lamentos ortodoxos, de melismas nilóticos, cantos otomanos, baladas búlgaras, modinhas mediterrânicas do medievo e música cortesã do extremo oriente, quase sempre comandado por recitativos algo caprichosos, para não dizer pior. Um exemplo: na chegada a Meca são descritas emoções que nada diferem das de qualquer peregrino a cumprir o Haje; eu teria optado por mandar ler isto em voz alta: “As mequenses são de uma beleza incomparável, liberais no uso de aromas a ponto de se ficarem a sentir os seus eflúvios após a sua passagem” – “Hoo-ah”, exclamaria Pacino. Outro: “Os habitantes das Maldivas são inclinados à piedade e professam uma fé sincera”, escuta-se, a propósito da estada de Battuta no arquipélago; como é óbvio, um moralista como Savall nunca citaria uma frase destas: “Têm produtos com efeitos incomparáveis na vida sexual. Eu mesmo tive quatro mulheres e várias amantes ao longo do ano e meio que lá vivi e era capaz de visitá-las diariamente ou de passar a noite com quem de direito” – 650 anos antes do Viagra!

Não obstante as tendências hagiográficas do maestro catalão, tudo isto para sublinhar o estranho caso de Ibn Battuta: alguém – ao contrário do seu imediato predecessor europeu, Marco Polo – incapaz de disfarçar indignação, irritação, intolerância, vulgaridade, valentia e volúpia perante um mundo em que luta permanentemente o que existe com o que está à beira da extinção. Nisso, em nada mudou.

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