23 de fevereiro de 2019

Larry Grenadier “The Gleaners” (ECM, 2019), Barre Phillips “Mountainscapes” (ECM, re. 2019), Eberhard Weber “The Following Morning” (ECM, re. 2019), Dave Holland Quintet “Seeds Of Time” (ECM, re. 2019), Miroslav Vitous/Jan Garbarek “Atmos” (ECM, re. 2019)



Não fosse o aspecto pouco prático da coisa, dir-se-ia que Larry Grenadier se deitava com o contrabaixo no divã: “Este disco é o culminar de um processo de reflexão, de busca pelos elementos centrais que fazem de mim o contrabaixista que sou e pelos fios de harmonia e ritmo que costuram a trama da identidade musical. Sempre me habituei a respigar aqui e ali, à cata de ideias úteis.” Pois, nada como um músico para meter a foice em seara alheia! Daí este “The Gleaners”, cujo conceito-chave, então, deverá algo a “Les glaneurs et la glaneuse”, de Agnès Varda, em que a realizadora se entregava à “respiga artística”, conforme assumiu numa entrevista à “Cineaste”, em 2001: “Colhem-se ideias, colhem-se imagens, colhem-se as emoções das outras pessoas e depois faz-se um filme com isso.” Além daquilo que semeou ao lado de Lloyd, Motian ou Mehldau, entre outros, Grenadier respiga, até, o próprio passado da ECM – em depoimentos, nos materiais de promoção da editora, refere a influência de álbuns a solo de Dave Holland ou Miroslav Vitous e reconhece a importância de uma descoberta recente, como foi, por sugestão de Manfred Eicher, a da obra de Hindemith interpretada por Kim Kashkashian (lançada em 1988 numa caixa tripla, “Sonatas for Viola/Piano and Viola Alone” é uma das pérolas da New Series). Seja como for, “The Gleaners” surge desembaraçado de anacronismos e, no seu melhor, aviva aquela velha meditação de Ovídio: de que a verdadeira arte consiste em dissimular o artifício. Ainda assim: “Foi o Manfred que plantou esta ideia. Ele conhece o instrumento, bem como sua história, e sabe como poucos trabalhá-lo em estúdio de forma a trazer ao de cima as suas qualidades.” É uma espécie de arqueologia invertida, ou, como diria Hegel, uma categoria em que é o efeito a determinar a causa.


O que lembra um ensaio de Peter Rüedi incluído no álbum fotográfico “Sleeves of Desire – A Cover Story”, onde se lê: “Eicher e os engenheiros de som com que decide trabalhar estão afinados pelas camadas, texturas e materialidade do som, em particular quando gravam o instrumento que [o produtor] conhece melhor – o contrabaixo. Pensem em ‘Emerald Tears’, de Holland [1978], em que madeira, metal e pele têm dimensão sonora.” Na verdade, possuem uma dimensão praticamente gasosa. E o mesmo se podia aplicar a outros álbuns de contrabaixo gravados a solo em que Eicher separava o trigo do joio e se concentrava num tom que se diria existir exclusivamente na sua mente, como “Call Me When You Get There”, de Barre Phillips (1984), “Emergence”, de Vitous (1986), ou “Pendulum”, de Eberhard Weber (1993) – passe a contradição, respigadores de primeira apanha. Holland: “Muita da grande arte, seja visual, musical ou escrita, é aquela que capta verdades fundamentais mas que, ao mesmo tempo, sugere novos enquadramentos, novas maneiras de encarar essas verdades: falo da alegria, da solidão, do amor, do companheirismo, do comunitarismo, da esperança”, afirmou a Anil Prasad, da “Bass Player”. Phillips: “O meu ouvido alimenta-se de um conjunto de experiências acumuladas e armazenadas nas minhas memórias, quer mental, quer muscular. E o meu papel é o de escutar ativamente o que ele sugere. Nessa medida, ouço a parte que me compete como se tivesse sido composta por outra pessoa”, dizia ele por alturas de “End to End”. Não esquecendo que Vitous criou uma base de dados chamada “The Miroslav Vitous Symphony Orchestra Sound Library” em que ao longo de sete anos debulhou a totalidade das notas de cada um dos instrumentos de uma orquestra sinfónica ou que Weber, após um AVC, construiu “Résumé” (2012) a partir de dezenas de solos seus gravados entre 1990 e 2007 no seio do grupo de Jan Garbarek.


Em “ECM – A Cultural Archaeology” (2012), pressionado para integrar a fundação da ECM num contexto qualquer, Eicher explicou que “havia um fragmento aqui, outro acolá”, que “juntou músicos de paisagens e proveniências diferentes que se inspiravam mutuamente” mas que, no fundo, “o modo de montar esse mosaico não era muito claro”, que o importante, dizia, era “deambular por culturas e línguas diferentes” e como que “rumar ao coração da História”. Agora, a assinalar o quinquagésimo aniversário da editora, dá mostras de respigar fundo de catálogo sob esse signo numa seleção de 50 discos (25 saíram agora, outros 25 saem lá mais para o verão) em que se recomenda sem grandes hesitações um punhado deles – como “Ballads”, de Paul Bley (1971), “Divine Love”, de Leo Smith (1979), “Standards, Vol. 1”, de Keith Jarrett, Gary Peacock e Jack DeJohnette (1983), “Andina”, de Dino Saluzzi (1988), ou “Juni”, de Peter Erskine, Palle Danielsson e John Taylor (1999) – e donde se destacam estes quatro de músicos com que Eicher partilhava uma deambulação básica: do instrumento que o obrigaram a tocar para o instrumento que elegeu tocar (para os curiosos, fica a informação de que há um registo fonográfico de Eicher a tocar contrabaixo – em “Celebrations”, de Bob Degen, gravado em 1968). Como não poderia deixar de ser, são álbuns que iludem a linguagem da mercantilização e da uniformização de bens: “Mountainscapes” (1976), então, que marca o ingresso de John Surman na família ECM, parece acomodar todas as ruturas no pensamento do seu tempo sem por um instante insinuar descontinuidades de maior (desconcertantemente eclético, foi em parte concebido para as produções de Carolyn Carlson e assume responsabilidades coreográficas); “The Following Morning” (1977), com Weber e Rainer Brüninghaus acompanhados pelos violoncelos, trompas e oboés da Filarmónica de Oslo e por aquelas típicas figurinhas musicais feitas à medida de bonecos de pano e plasticina, trata de algo caro ao seu autor: destacar borbotos de emoção dignos de um universo animado pela fantasia; em “Seeds” (1985), Holland reúne Steve Coleman, Julian Priester, Marvin “Smitty” Smith e Kenny Wheeler e encosta-se a um dos pilares da ECM: o de desbravar terrenos e de os deixar prontos a cultivar por quem vem depois; “Atmos” (1992), por sua vez, junta Vitous a Garbarek e vaporiza a rigidez associada a papéis predeterminados – tudo o que se ouve num é oferecido pelo outro; tudo o que um recebe tem como consequência uma revelação no outro. 

Em meados dos anos 80, a experimentar com o processo negativo/positivo, Stefano Scodanibbio escancarou a porta da câmara escura da invenção com o retrato acabado do seu instrumento quando viu, por fim, alguém enumerar as características que o contrabaixo não possuía: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade, consistência – isto é, as “Sei proposte per il prossimo millennio”, de Calvino. Não admira que a sua música tenha ido parar à ECM, onde as cordas do contrabaixo são como sulcos em terra lavrada e o seu arco é como o do livrinho de tiro de Herrigel. Na versão de Keats: “Às vezes tens direita, qual respigadeira/ A pesada cabeça, ao passar a ribeira/ Outras, observas tranquila, junto à prensa de cidra/ A última gota ao fim de horas extraída// Que é das canções da Primavera? Onde estão?/ Não penses nelas – tu tens a tua música.” Uma música com basso continuo.

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