Não
fosse o aspecto pouco prático da coisa, dir-se-ia que Larry Grenadier se deitava
com o contrabaixo no divã: “Este disco é o culminar de um processo de reflexão,
de busca pelos elementos centrais que fazem de mim o contrabaixista que sou e
pelos fios de harmonia e ritmo que costuram a trama da identidade musical. Sempre
me habituei a respigar aqui e ali, à cata de ideias úteis.” Pois, nada como um
músico para meter a foice em seara alheia! Daí este “The Gleaners”, cujo conceito-chave,
então, deverá algo a “Les glaneurs et la glaneuse”, de Agnès Varda, em que a
realizadora se entregava à “respiga artística”, conforme assumiu numa
entrevista à “Cineaste”, em 2001: “Colhem-se ideias, colhem-se imagens,
colhem-se as emoções das outras pessoas e depois faz-se um filme com isso.” Além
daquilo que semeou ao lado de Lloyd, Motian ou Mehldau, entre outros, Grenadier
respiga, até, o próprio passado da ECM – em depoimentos, nos materiais de
promoção da editora, refere a influência de álbuns a solo de Dave Holland ou
Miroslav Vitous e reconhece a importância de uma descoberta recente, como foi,
por sugestão de Manfred Eicher, a da obra de Hindemith interpretada por Kim
Kashkashian (lançada em 1988 numa caixa tripla, “Sonatas for Viola/Piano and
Viola Alone” é uma das pérolas da New Series). Seja como for, “The Gleaners”
surge desembaraçado de anacronismos e, no seu melhor, aviva aquela velha
meditação de Ovídio: de que a verdadeira arte consiste em dissimular o
artifício. Ainda assim: “Foi o Manfred que plantou esta ideia. Ele conhece o
instrumento, bem como sua história, e sabe como poucos trabalhá-lo em estúdio
de forma a trazer ao de cima as suas qualidades.” É uma espécie de arqueologia
invertida, ou, como diria Hegel, uma categoria em que é o efeito a determinar a
causa.
O que
lembra um ensaio de Peter Rüedi incluído no álbum fotográfico “Sleeves of
Desire – A Cover Story”, onde se lê: “Eicher e os engenheiros de som com que
decide trabalhar estão afinados pelas camadas, texturas e materialidade do som,
em particular quando gravam o instrumento que [o produtor] conhece melhor – o
contrabaixo. Pensem em ‘Emerald Tears’, de Holland [1978], em que madeira,
metal e pele têm dimensão sonora.” Na verdade, possuem uma dimensão
praticamente gasosa. E o mesmo se podia aplicar a outros álbuns de contrabaixo
gravados a solo em que Eicher separava o trigo do joio e se concentrava num tom
que se diria existir exclusivamente na sua mente, como “Call Me When You Get
There”, de Barre Phillips (1984), “Emergence”, de Vitous (1986), ou “Pendulum”,
de Eberhard Weber (1993) – passe a contradição, respigadores de primeira apanha.
Holland: “Muita da grande arte, seja visual, musical ou escrita, é aquela que
capta verdades fundamentais mas que, ao mesmo tempo, sugere novos
enquadramentos, novas maneiras de encarar essas verdades: falo da alegria, da
solidão, do amor, do companheirismo, do comunitarismo, da esperança”, afirmou a
Anil Prasad, da “Bass Player”. Phillips: “O meu ouvido alimenta-se de um
conjunto de experiências acumuladas e armazenadas nas minhas memórias, quer
mental, quer muscular. E o meu papel é o de escutar ativamente o que ele sugere.
Nessa medida, ouço a parte que me compete como se tivesse sido composta por
outra pessoa”, dizia ele por alturas de “End to End”. Não esquecendo que Vitous
criou uma base de dados chamada “The Miroslav Vitous Symphony Orchestra Sound
Library” em que ao longo de sete anos debulhou a totalidade das notas de cada
um dos instrumentos de uma orquestra sinfónica ou que Weber, após um AVC,
construiu “Résumé” (2012) a partir de dezenas de solos seus gravados entre 1990
e 2007 no seio do grupo de Jan Garbarek.
Em
“ECM – A Cultural Archaeology” (2012), pressionado para integrar a fundação da
ECM num contexto qualquer, Eicher explicou que “havia um fragmento aqui, outro
acolá”, que “juntou músicos de paisagens e proveniências diferentes que se
inspiravam mutuamente” mas que, no fundo, “o modo de montar esse mosaico não
era muito claro”, que o importante, dizia, era “deambular por culturas e
línguas diferentes” e como que “rumar ao coração da História”. Agora, a
assinalar o quinquagésimo aniversário da editora, dá mostras de respigar fundo
de catálogo sob esse signo numa seleção de 50 discos (25 saíram agora, outros
25 saem lá mais para o verão) em que se recomenda sem grandes hesitações um
punhado deles – como “Ballads”, de Paul Bley (1971), “Divine Love”, de Leo
Smith (1979), “Standards, Vol. 1”, de Keith Jarrett, Gary Peacock e Jack
DeJohnette (1983), “Andina”, de Dino Saluzzi (1988), ou “Juni”, de Peter
Erskine, Palle Danielsson e John Taylor (1999) – e donde se destacam estes
quatro de músicos com que Eicher partilhava uma deambulação básica: do
instrumento que o obrigaram a tocar para o instrumento que elegeu tocar (para
os curiosos, fica a informação de que há um registo fonográfico de Eicher a
tocar contrabaixo – em “Celebrations”, de Bob Degen, gravado em 1968). Como não
poderia deixar de ser, são álbuns que iludem a linguagem da mercantilização e
da uniformização de bens: “Mountainscapes” (1976), então, que marca o ingresso
de John Surman na família ECM, parece acomodar todas as ruturas no pensamento
do seu tempo sem por um instante insinuar descontinuidades de maior (desconcertantemente
eclético, foi em parte concebido para as produções de Carolyn Carlson e assume
responsabilidades coreográficas); “The Following Morning” (1977), com Weber e
Rainer Brüninghaus acompanhados pelos violoncelos, trompas e oboés da
Filarmónica de Oslo e por aquelas típicas figurinhas musicais feitas à medida
de bonecos de pano e plasticina, trata de algo caro ao seu autor: destacar borbotos
de emoção dignos de um universo animado pela fantasia; em “Seeds” (1985),
Holland reúne Steve Coleman, Julian Priester, Marvin “Smitty” Smith e Kenny
Wheeler e encosta-se a um dos pilares da ECM: o de desbravar terrenos e de os
deixar prontos a cultivar por quem vem depois; “Atmos” (1992), por sua vez,
junta Vitous a Garbarek e vaporiza a rigidez associada a papéis predeterminados
– tudo o que se ouve num é oferecido pelo outro; tudo o que um recebe tem como
consequência uma revelação no outro.
Em meados dos anos 80, a experimentar com o processo
negativo/positivo, Stefano Scodanibbio escancarou a porta da câmara escura da
invenção com o retrato acabado do seu instrumento quando viu, por fim, alguém enumerar
as características que o contrabaixo não possuía: leveza, rapidez, exatidão,
visibilidade, multiplicidade, consistência – isto é, as “Sei proposte per il
prossimo millennio”, de Calvino. Não admira que a sua música tenha ido parar à
ECM, onde as cordas do contrabaixo são como sulcos em terra lavrada e o seu
arco é como o do livrinho de tiro de Herrigel. Na versão de Keats: “Às vezes
tens direita, qual respigadeira/ A pesada cabeça, ao passar a ribeira/ Outras, observas
tranquila, junto à prensa de cidra/ A última gota ao fim de horas extraída// Que
é das canções da Primavera? Onde estão?/ Não penses nelas – tu tens a tua
música.” Uma música com basso continuo.
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