Em “Paul Klee: Philosophical Vision – From Nature
to Art”, a certa altura, e pegando numa caracterização do pintor, fala-se em
combate de linhas, em choque e contrachoque, em contorções e contrações, em camadas
de cor que, em virtude da sua própria massa e rigidez, impedem que outras camadas
de cor venham ocupar o seu espaço, defendendo-se, deformando-se, desequilibrando-se,
destruindo-se – dir-se-ia o efeito da Partilha de África num mapa ou, como é
óbvio, a descrição do que faz este singular “Nomaden” à tradição das obras
concertantes para violoncelo. Mas, na realidade, trata-se de uma análise de
“Caminhos Principais e Caminhos Secundários”, de cujo pormenor se compõe precisamente
a capa deste CD – Klee pintou-o após uma viagem ao Egipto, e pode ser que procurasse
apenas representar aquela estratificação assimétrica dos campos de cultivo à
beira-rio, de captar a “topografia da cor”, dizia. Agora, num depoimento
divulgado no YouTube, é Joël Bons que afirma interessar-se por “combinar coisas
que são impossíveis de combinar e de ver se há forma de as pôr a funcionar em
conjunto” – nem por acaso, a navegar nas mesmíssimas águas territoriais, Yo-Yo Ma
batizou um disco do Silk Road Ensemble como “New Impossibilities”.
Assim,
prossegue o compositor, “Nomaden” é uma espécie de “viagem em que o
protagonista entra em diálogo com músicos de outras tradições”, gente oriunda
da China, do Japão, da Índia, do Irão, do Azerbaijão, da Arménia, da Turquia,
mas igualmente da Holanda, Itália, Áustria e Venezuela, instrumentistas com que
Bons trabalha desde 2002. Curiosamente, a abrir, quando se dá um acorde
absolutamente constelado e, logo depois, vagidos em kamancheh, erhu e sarangi respondem ao apelo do
violoncelo, é também numa frase de Klee que se pensa: “Numa perspetiva
cosmogónica, não é preciso grande impulso energético – só movimento. Na arte, a
‘causa’ possui uma força infinita.” Acima de tudo, vem à memória o princípio da
vida segundo o povo aborígene, tal como o recordou Bruce Chatwin, em “O Canto
Nómada”: “Cada antepassado abriu a boca e gritou ‘Eu sou!’”, cobrindo de cantos
a superfície da Terra. Em “Nomaden”, é como se esses cantos fossem
continuamente desterritorializados, dando origem a silêncios intersticiais de
que, por sua vez, e em simultâneo, novos cantos resultam, uns como passado,
outros como futuro – trilhos de sons que testemunham a invenção do mundo.
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