Dizer que há algo indefinido nas sessões de gravação de uma música
acentuadamente indeterminada roça o truísmo. Art Hodes, um pianista e articulista
um pouco esquecido que se associa ao Plistoceno da Blue Note, tentou fazê-lo,
em finais de 60, quando a editora lhe tirava da arca frigorífica umas idas a
estúdio que há 25 anos submetia ao frio: “Entravas e davas logo de caras com
uns enormes sacos cheios de comida. Ou seja, depois de começarmos a tocar nem
tínhamos que tornar a sair do edifício. O Alfred pendurava o chapéu no
bengaleiro da sala de controlo e o Frank punha-se a tirar fotografias por todo
o lado. Passado um bocado habituavas-te a tê-lo ao colo. As fotos eram ótimas!”
Ainda que a pretexto de escrever exatamente sobre ambas, Art, como é óbvio, não
faz menção à arte, nem sequer à técnica – o que lhe interessa é sintetizar as
múltiplas formas de as encarar de uma perspetiva mais humana, pessoal. Na
melhor aceção possível do termo, dir-se-ia ter ficado para sempre contagiado
pelo amadorismo da situação – aliás, quem lesse a sua descrição seria levado a
concluir que Alfred e Frank eram pai e filho.
Referia-se naturalmente a Alfred Lion e Francis Wolff,
responsáveis máximos da Blue Note, velhos colegas de liceu na Berlim dos anos
20, loucos por jazz e reunidos em Nova Iorque pelo destino e pela obrigação de fugir
ao nazismo. Verdade seja dita, até Wolff hesitava quando levado a refletir
sobre as mais distintas qualidades da editora: “O jazz havia ganho embalo
suficiente para que uma experiência destas pudesse resultar. A princípio não juntávamos
mais de meia dúzia de clientes, mas, pouco a pouco, o nosso modo nada
comercialista de fazer as coisas foi dando que falar. Acabámos por criar um
estilo, embora tenha alguma dificuldade em identificá-lo. Recordo-me que as
pessoas diziam que eu e o Alfred só gravávamos aquilo de que gostávamos. Lá
isso era verdade. Se posso acrescentar mais duas palavras, diria que gravávamos
com sentimento” (in “The Blue Note
Label”, de Michel Ruppli e Michael Cuscuna). Claro que o mesmo se pode dizer da
sua fotografia, em particular desde que em 1995 foi lançado “The Blue Note
Years: The Jazz Photography of Francis Wolff” e se pôde apreciar o que fez sem
o despudor da funcionalidade.
Wolff fotografava para si – e basta voltar à frase de Hodes,
relativa a um período em que não se produziam LP, para se compreender que era assim
muito antes de se terem avolumado os requerimentos do gabinete gráfico da
editora. Mas logo que se tornou imperativo acompanhar as necessidades da indústria
– planear capas, publicitar catálogos, promover artistas – Wolff e Lion não
tiveram dúvidas: “Para eles, era da maior importância colocar os músicos com
proeminência nos discos, embora os distribuidores estivessem sempre a chateá-los
com a conversa de que venderiam mais com miúdas giras nas capas”, dizia Ruth
Lion, a viúva de Alfred, em “The Cover Art of Blue Note Records”. Desse modo, Wolff
ganhava instantaneamente galerista, conquanto limitado a retalhistas interessados
em receber álbuns de Art Blakey, Clifford Brown, Donald Byrd, Dexter Gordon,
Grant Green, Lee Morgan, Jimmy Smith, Wayne Shorter, Bud Powell, Thelonious
Monk, Horace Silver, Sonny Rollins, Herbie Hancock [na foto] ou Sonny Clark [na segunda foto], nomes que se vêem agora nas
páginas deste “Jazz Images” e nas capas de duas novas séries de discos – uma em
LP, outra em CD. Observando-as, o que salta à memória é o chiaroscuro de Caravaggio ou os quadros à luz da vela de Georges de
La Tour, exemplos tirados da história da pintura em que se frustrava toda a
premeditação que pode haver no retrato e que Wolff aplicava a esta gente, do
mais digno que pode haver e no entanto sujeita a tantas atribulações, capaz de
mergulhar na treva da sua própria vida e, em transe, de lá sacar uma centelha a
derramar luz sobre a dos demais. Wolff captou-a para a eternidade.
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