João
Donato “A Bossa Muito Moderna de Donato e Seu Trio” + “Muito À Vontade”
(Aquarela do Brasil, re. 2019)
Diziam
que andava sempre nas nuvens. E tinham razão: afinal, era filho de um major da
Força Aérea. Mas para o que agora interessa enalteçam-se as pontes musicais que
precocemente criou entre Brasil e exterior quando emigrou para os EUA, em
finais de 50, tornando a música nacional do seu país de certo modo mais
americana do que pretendia ser. Em 1962, numa ida ao Rio de Janeiro para matar
saudades, gravou de uma assentada estes discos com Tião Neto, Milton Banana e
Amaury Rodrigues, retratando a viagem que havia feito para norte com escala na Placa
do Caribe. Aliás, imagina-se o seu sorriso matreiro ao tocar em ritmo antilhano
‘Só Danço Samba’ (de Jobim e Vinicius), cuja letra dizia o seguinte: “Já dancei o twist até demais/ Mas não
sei/ Me cansei/ Do calipso ao cha-cha-chá”. Pois, ele não.
Azymuth
“Águia Não Come Mosca” (Mr Bongo, re. 2019)
O
seu primeiro sucesso, logo na estreia, em 1975, tiveram-no quando ‘Linha do
Horizonte’ surgiu colada às conquistas de um piloto de avião pinga-amor na
banda sonora da novela “Cuca Legal”. Não admira que este belo LP de 1977 arrancasse
com ‘Voo Sobre o Horizonte’. Em 1979, “Light as a Feather” viria a sair na
Milestone e nem o jazz elétrico, nem os Azymuth tornariam a aterrar.
Maria
Farantouri, Cihan Türkoglu “Beyond The Borders” (ECM, 2019)
O
saxofonista inglês Evan Parker disse um dia que os improvisadores unificaram a
Europa muito antes dos políticos. Já Maria Farantouri, por sua vez,
acrescentaria que antes ainda dos improvisadores já por cá havia gente como
ela. Aqui, às voltas com melodias levantinas, com turcos, arménios e uma alemã,
faz aquilo com que tanta gente sonha o ano inteiro: ultrapassar fronteiras.
Claude
Fontaine “Claude Fontaine” (Innovative Leisure, 2019)
Claude
Fontaine perdeu-se de amores pelo reggae e pela bossa nova e ficou com um
desejo com o qual teria de ter muito cuidado: criar uma daquelas pérolas que se
“encontram no fundo de um caixote com o refugo de uma loja”. Portanto, ficará
por aí. Pelo menos até ao dia em que futuros colecionadores percebam que teve a
seu lado Tony Chin e Airto Moreira e pôs um pé na eternidade.
Franz
Koglmann Septet “Fruits of Solitude” (Hat Hut, 2019)
Há
um poema de Mario Benedetti (“Pausa de Agosto”) que sugere que verão e solidão
servem para gerar presenças. No caso de Koglmann dir-se-ia que a assombração é
múltipla – ora está com o tema de Ellington que dizia “In my solitude/ You
haunt me”, ora com aquele “Um cantinho e um violão”, de Jobim, que produzia a
aparição do Corcovado. Canções de amor para cidades vazias, ambas.
Gabriele
Mitelli, Rob Mazurek “Star Splitter” (Clean Feed, 2019)
Mais
ou menos da altura em que Mazurek foi viver para o Brasil, há uma canção de
Paula Toller que diz assim: “Virando a noite/ Perdendo o senso/ Derretendo
satélites/ Voando à noite/ Ouvindo estrelas/ Derretendo satélites”. Não admira
que sirva de descrição aproximada para um CD que tem escrito na contracapa Star Gaze
Night. Mitelli, Mazurek, o medo e o
mistério do céu noturno.
Gianluigi
Trovesi/Gianni Coscia “La Misteriosa Musica Della Regina Loana” (ECM, 2019)
Como
é óbvio, o ponto de partida, aqui, é “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de
Umberto Eco, essa ode à intertextualidade de que a memória por vezes se compõe,
mais alimentada a livros e a vinil do que a madalenas. Como Yambo, na novela, Trovesi
e Coscia desmagnetizam as setas do tempo, que ao jeito das agulhas de uma
bússola desnorteada logo endoidecem, parando ora em ‘Moonlight Serenade’
(Miller), ora em “Nas Brumas” (Janácek), com passagens por “As Time Goes By”
(Hupfeld), “Basin Street Blues” (Williams), ‘Bel Ami’ ou ‘Bella Ciao’. Sendo este
o assunto, lembram a capa de “Out to Lunch!”, de Dolphy, com a tal fotografia
em que pendurado na porta de uma loja fechada aparece o típico relógio
“Voltamos Às” com sete ponteiros a marcar sete possibilidades. O Nino Rota de
“Amarcord” sorriu.
“Terpsichore
– Apothéose de la Danse Baroque” (Alia Vox, 2019)
Terpsícore
é na mitologia grega a musa “que se deleita na dança”. De tal forma, até, que,
em “Ritmo Louco” (1936), quando perguntam a Lucky (Fred Astaire) por que razão
quer aprender a dançar, ele responde: “Para namoriscar com Terpsícore.”
Duzentos anos antes, nos salões coreografados pela música de J-F Rebel e
Telemann, já saracoteavam as cortes e noutra coisa não se pensava.
Liszt:
Aux Cyprès de la Villa D’Este (Music on CD, re. 2019)
Eram
algumas das suas “relações bem reais, ainda que indefinidas” com os sítios por
onde passou, suscetíveis de despertar formas de comunicação “tão inexplicáveis
quão inegáveis”, como Liszt as definiu. Entre elas, a de que poderia deixar-se
ficar à sombra dos ciprestes da Villa d’Este. Há 35 anos, neste CD, Leeuw conduziu
uma autópsia ao mórbido prazer que a evocação traz ao espírito, complementando-a
com a não menos lúgubre “La Notte”, inspirada tanto na estátua de Miguel Ângelo
quanto no epigrama com que o escultor a descreveu: “Caro me é o sono// Por isso
não me perturbem/ Falem baixo.” Mas Leeuw toca como se tivesse em mente um
poema de Neruda: “Porém, porque peço silêncio/ Não creiam que vá morrer/ Bem
pelo contrário/ Acontece que vou viver.” Um belo apontamento para noites de
verão.
Skalkottas:
Piano Works (BIS, 2019)
Embaixadora
da obra de Nikos Skalkottas (1904-49), que colocou no mercado entre 1998 e
2008, a BIS patrocina agora as primeiras gravações de “Suíte Grega” e “Os
Gnomos”, uma composta em Berlim com o regime na Grécia preso por um fio, outra
escrita em Atenas com a Alemanha a um passo do abismo. Skalkottas quis redimir
o melhor de ambas, numa espécie de prolongado idílio estival.
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