18 de abril de 2015

Billie Holiday "God Bless the Child: Best Of…" (Verve, 2015) & José James "Yesterday I Had the Blues: The Music Of Billie Holiday" (Blue Note, 2015) & Cassandra Wilson "Coming Forth By Day" (Sony, 2015)



Caso lhe viesse a pegar, não seria difícil imaginar a sua reação. Ficaria a olhar, com aquela máscara estampada no rosto, variando sucessivamente entre o “escárnio, uma certa impaciência e uma profunda tristeza”, conforme a caracterização de Max Jones em “Jazz Talking” (um livro de crónicas em que o jornalista do “Melody Maker” recorda o tempo passado com a cantora durante a sua deslocação ao Reino Unido, em 1954), e pela sua cabeça talvez se formasse qualquer coisa parecida com o que escreveu Plath em “Um Presente de Aniversário”: “Isto, sob este véu, o que é/ Será feio, será bonito”? Não obstante, por se dedicar essencialmente à música, e por equilibrar facto e fantasia num momento em que a realidade virtual vale mais do que a verídica, “The Musician and the Myth”, a biografia que lhe acaba de consagrar John Szwed (autor de “Space is the Place: The Lives and Times of Sun Ra” ou “Alan Lomax: The Man Who Recorded the World”), é a melhor prenda que Billie Holiday poderia receber neste mês em que faria 100 anos. Começa assim: “Os que tentaram escrever sobre si descobriram que há muitas Billie Holiday: uma jovial e alegre, outra amargurada e destinada a sofrer; uma que guincha como uma gaiata e outra que murmura como uma mulher madura.” E prossegue desta maneira: “Coloquem 50 ou 60 fotos suas em cima da mesa e vão ver uma figura corpulenta e uma sílfide coberta de seda, uma africana e uma asiática, uma petulante miss e uma bêbada incurável, o retrato de uma condenada num registo criminal e o sorriso de uma mãe de família em pose com um animal de estimação.”

Isto é, tanto quanto a sua voz, acredita-se que também a sua cara nunca mentiu. Acerca da cantora em início de carreira, por exemplo, escreveu Alice Adams em “Listening to Billie”: “De repente ali está ela, e todos o sabem, ainda que tenham de rodar o pescoço para trás para a ver, porque entrou pela porta principal do clube como se fosse uma pessoa qualquer. Ou melhor, como se não fosse, de todo, uma pessoa qualquer: ela é mais bela e cintilante do que os demais, inclinando a face para a frente como se fosse cheirar uma flor, confiante e ansiosa, vigilante e amável, maçãs do rosto claras e altas, um sorriso imaculado, de gardénia creme atrás da orelha.” Desta Billie colocou-se há pouco no mercado a antologia quádrupla “Lady Day: The Master Takes and Singles” ou “The Centennial Collection” (ambos Sony), uma compilação de 20 temas. Já Maya Angelou, no autobiográfico “The Heart of a Woman”, descreveu uma “mulher doente e só, com a boca em forma de cais”. É dessa que “God Bless the Child” se ocupa: da que morreu em 1959, aos 44 anos, e que, de facto, já então cantava como se tivesse atingido os 100.

A seleção reúne gravações captadas entre 1952 e 1957 e originalmente lançadas em lúgubres LP da Clef e da Verve como “Billie Holiday Sings”, “Music for Torching”, “Lady Sings the Blues” e “Songs for Distingué Lovers”. O sádico de serviço foi José James, que naturalmente escolheu repertório confundindo o sujeito do enunciado com o sujeito da enunciação. Nessa perspetiva, dir-se-ia mais uma vítima da estratégia que Holiday gerou quando já não conseguia mobilizar a ambiguidade e atribuía uma espécie de dimensão biográfica pré-existente a textos que muito a precederam. Era a Billie do drama e trauma contínuo. A Billie em que memória e ficção se infiltravam uma na outra deixando-lhe a identidade em cacos. A Billie cuja disfunção se media pelo seu próprio alcance metafórico, personificando mágoa, traição, saudade, rejeição. Até a linguagem lhe doía, reduzindo as palavras a cemitérios de letras e patenteando um arsenal de gemidos e grunhidelas, roncos e rosnadelas a representar o impronunciável, um fôlego possuído pelas partículas que lhe tiravam anos à vida. Ainda assim, o seu instinto colocava-a sempre do lado das canções.  

Não admira que James, neste “Yesterday I Had the Blues”, venha agora prestar homenagem a quem “transformou a tragédia em arte”. Ou, muito menos, que seja abordando canções do mesmo espaço poético que Cassandra Wilson a evoque com “Coming Forth By Day”. Possuem o mérito de não problematizar o luto mas parecem irradiar de um centro narcísico semelhante, ainda que provenham de estéticas diametralmente opostas: James acompanhado por um trio (Jason Moran, John Patitucci, Eric Harland) que evoca o tipo de classicismo pelo qual Holiday nunca se interessou; Wilson rodeada por membros dos Bad Seeds (Thomas Wydler e Martyn Casey), por T-Bone Burnett, Nick Zinner ou Van Dyke Parks, imprimindo aos materiais uma afetação a que, apesar de tudo, Holiday sempre tentou resistir.

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