Caso lhe viesse a pegar, não seria
difícil imaginar a sua reação. Ficaria a olhar, com aquela máscara estampada no
rosto, variando sucessivamente entre o “escárnio, uma certa impaciência e uma
profunda tristeza”, conforme a caracterização de Max Jones em “Jazz Talking” (um
livro de crónicas em que o jornalista do “Melody Maker” recorda o tempo passado
com a cantora durante a sua deslocação ao Reino Unido, em 1954), e pela sua
cabeça talvez se formasse qualquer coisa parecida com o que escreveu Plath em “Um
Presente de Aniversário”: “Isto, sob este véu, o que é/ Será feio, será
bonito”? Não obstante, por se dedicar essencialmente à música, e por equilibrar
facto e fantasia num momento em que a realidade virtual vale mais do que a
verídica, “The Musician and the Myth”, a biografia que lhe acaba de consagrar John
Szwed (autor de “Space is the Place: The Lives and Times of Sun Ra” ou “Alan
Lomax: The Man Who Recorded the World”), é a melhor prenda que Billie Holiday
poderia receber neste mês em que faria 100 anos. Começa assim: “Os que tentaram
escrever sobre si descobriram que há muitas Billie Holiday: uma jovial e
alegre, outra amargurada e destinada a sofrer; uma que guincha como uma gaiata
e outra que murmura como uma mulher madura.” E prossegue desta maneira: “Coloquem
50 ou 60 fotos suas em cima da mesa e vão ver uma figura corpulenta e uma
sílfide coberta de seda, uma africana e uma asiática, uma petulante miss e uma bêbada incurável, o retrato de
uma condenada num registo criminal e o sorriso de uma mãe de família em pose
com um animal de estimação.”
Isto é, tanto quanto a sua voz,
acredita-se que também a sua cara nunca mentiu. Acerca da cantora em início de
carreira, por exemplo, escreveu Alice Adams em “Listening to Billie”: “De
repente ali está ela, e todos o sabem, ainda que tenham de rodar o pescoço para
trás para a ver, porque entrou pela porta principal do clube como se fosse uma
pessoa qualquer. Ou melhor, como se não fosse, de todo, uma pessoa qualquer:
ela é mais bela e cintilante do que os demais, inclinando a face para a frente
como se fosse cheirar uma flor, confiante e ansiosa, vigilante e amável, maçãs
do rosto claras e altas, um sorriso imaculado, de gardénia creme atrás da
orelha.” Desta Billie colocou-se há pouco no mercado a antologia quádrupla
“Lady Day: The Master Takes and Singles” ou “The Centennial Collection” (ambos
Sony), uma compilação de 20 temas. Já Maya Angelou, no autobiográfico “The
Heart of a Woman”, descreveu uma “mulher doente e só, com a boca em forma de
cais”. É dessa que “God Bless the Child” se ocupa: da que morreu em 1959, aos
44 anos, e que, de facto, já então cantava como se tivesse atingido os 100.
A seleção reúne gravações captadas
entre 1952 e 1957 e originalmente lançadas em lúgubres LP da Clef e da Verve
como “Billie Holiday Sings”, “Music for Torching”, “Lady Sings the Blues” e “Songs
for Distingué Lovers”. O sádico de serviço foi José James, que naturalmente
escolheu repertório confundindo o sujeito do enunciado com o sujeito da
enunciação. Nessa perspetiva, dir-se-ia mais uma vítima da estratégia que
Holiday gerou quando já não conseguia mobilizar a ambiguidade e atribuía uma
espécie de dimensão biográfica pré-existente a textos que muito a precederam.
Era a Billie do drama e trauma contínuo. A Billie em que memória e ficção se
infiltravam uma na outra deixando-lhe a identidade em cacos. A Billie cuja
disfunção se media pelo seu próprio alcance metafórico, personificando mágoa,
traição, saudade, rejeição. Até a linguagem lhe doía, reduzindo as palavras a cemitérios
de letras e patenteando um arsenal de gemidos e grunhidelas, roncos e
rosnadelas a representar o impronunciável, um fôlego possuído pelas partículas
que lhe tiravam anos à vida. Ainda assim, o seu instinto colocava-a sempre do
lado das canções.
Não admira que James, neste “Yesterday
I Had the Blues”, venha agora prestar homenagem a quem “transformou a tragédia
em arte”. Ou, muito menos, que seja abordando canções do mesmo espaço poético que
Cassandra Wilson a evoque com “Coming Forth By Day”. Possuem o mérito de não
problematizar o luto mas parecem irradiar de um centro narcísico semelhante,
ainda que provenham de estéticas diametralmente opostas: James acompanhado por
um trio (Jason Moran, John Patitucci, Eric Harland) que evoca o tipo de
classicismo pelo qual Holiday nunca se interessou; Wilson rodeada por membros
dos Bad Seeds (Thomas Wydler e Martyn Casey), por T-Bone Burnett, Nick Zinner ou
Van Dyke Parks, imprimindo aos materiais uma afetação a que, apesar de tudo,
Holiday sempre tentou resistir.
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