4 de abril de 2015

Cavalieri: Rappresentatione di Anima & di Corpo (Harmonia Mundi, 2015) & Lalande: Leçons de Ténèbres (Harmonia Mundi, 2015)




É de acordo com uma espécie de etiqueta de berçário – a do ‘é menino ou é menina?’ – que René Jacobs se interroga: “Esta ‘Rappresentatione di Anima et di Corpo’, o que é? Uma ópera ou um oratório?”. Isto, porque, ainda que inevitável, parece a questão depender mais do conhecimento adquirido do que propriamente do congénito. Afinal, nem para uma nem para outra expressão se possuía ainda um modelo em fevereiro de 1600, a data em que pela primeira vez se colocou a obra de Emilio de Cavalieri na presença do público, em Roma. O que leva a formulações presumível e previsivelmente tão exatas e estéreis e equilibradas e entediantes quanto aquelas que pelas notas de apresentação vão sucessivamente reiterando que, “a sobreviver na íntegra”, colocado ao serviço da escrita para cena e combinando as mais características tendências composicionais do seu tempo, sim, tudo indica que este “dramma per musica in 1 prologo e 3 atti in collaborazione com Padre Agostino Manni” se trata do “mais antigo documento a recorrer de modo substantivo ao canto, à ação de palco, à dança e à música instrumental”. Por sorte, Jacobs não deita o bebé fora com a água do banho. Ou seja, não estão daqui inteiramente ausentes aqueles traços de vaidade e narcisismo que se associam ao bel canto, nem, por exemplo, e como em tanta ficção evangélica, se sacrificam os recitativos em nome do moralismo, ou a tensão em nome da redenção. Pelo contrário, testando a elasticidade do material em mãos, o maestro faz teatro com a própria ambiguidade.

A tanto presta-se um texto organizado em forma de diálogo, composto segundo os ensinamentos de Filipe Néri e permeável às mais convencionais alegorias que acompanham a luta entre o bem e o mal. Resumindo: temos o Prazer a tentar vincular o Corpo; depois, a Alma perguntando ao Céu o que fazer; com o condão de seduzir, logo se manifestam o Mundo e a Vida Mundana, até que intervém o Anjo da Guarda revelando que as mais vistosas vestes outra coisa não cobrem que o esqueleto da Morte; num momento de contrastes acentuados – em que foi inspirada a opção de Jacobs em enxertá-lo com motivos da “Sinfonia Celeste” e da “Sinfonia Infernale”, de Alfonso Ferrabosco –, o Intelecto e o Conselho recomendam que se evite a todo o custo o Inferno; por fim, assim que se decidem a percorrê-lo, abre-se ao Corpo e à Alma o caminho que conduz ao Reino de Deus. Tudo isto movido a dúvidas e a danças, entregue ao luto e à ledice, até se concluir que as posses terrenas não são mais que “pó e sombra”.

Disso mesmo tratou Michel-Richard de Lalande ao publicar o livro com “III Leçons de Ténèbres et le Miserere à voix seule” consagrado à Semana Santa, em que, de certa forma, conciliando o beau chant com o tonus lamentationum, sugeria um teatro da penitência algures entre a alegria e a agrura.

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