É de acordo com uma espécie de
etiqueta de berçário – a do ‘é menino ou é menina?’ – que René Jacobs se
interroga: “Esta ‘Rappresentatione di Anima et di Corpo’, o que é? Uma ópera ou
um oratório?”. Isto, porque, ainda que inevitável, parece a questão depender
mais do conhecimento adquirido do que propriamente do congénito. Afinal, nem
para uma nem para outra expressão se possuía ainda um modelo em fevereiro de
1600, a data em que pela primeira vez se colocou a obra de Emilio de Cavalieri na
presença do público, em Roma. O que leva a formulações presumível e
previsivelmente tão exatas e estéreis e equilibradas e entediantes quanto
aquelas que pelas notas de apresentação vão sucessivamente reiterando que, “a
sobreviver na íntegra”, colocado ao serviço da escrita para cena e combinando
as mais características tendências composicionais do seu tempo, sim, tudo
indica que este “dramma per musica in 1 prologo e 3 atti in collaborazione com
Padre Agostino Manni” se trata do “mais antigo documento a recorrer de modo
substantivo ao canto, à ação de palco, à dança e à música instrumental”. Por
sorte, Jacobs não deita o bebé fora com a água do banho. Ou seja, não estão
daqui inteiramente ausentes aqueles traços de vaidade e narcisismo que se
associam ao bel canto, nem, por
exemplo, e como em tanta ficção evangélica, se sacrificam os recitativos em
nome do moralismo, ou a tensão em nome da redenção. Pelo contrário, testando a
elasticidade do material em mãos, o maestro faz teatro com a própria ambiguidade.
A tanto presta-se um texto
organizado em forma de diálogo, composto segundo os ensinamentos de Filipe Néri
e permeável às mais convencionais alegorias que acompanham a luta entre o bem e
o mal. Resumindo: temos o Prazer a tentar vincular o Corpo; depois, a Alma
perguntando ao Céu o que fazer; com o condão de seduzir, logo se manifestam o
Mundo e a Vida Mundana, até que intervém o Anjo da Guarda revelando que as mais
vistosas vestes outra coisa não cobrem que o esqueleto da Morte; num momento de
contrastes acentuados – em que foi inspirada a opção de Jacobs em enxertá-lo
com motivos da “Sinfonia Celeste” e da “Sinfonia Infernale”, de Alfonso
Ferrabosco –, o Intelecto e o Conselho recomendam que se evite a todo o custo o
Inferno; por fim, assim que se decidem a percorrê-lo, abre-se ao Corpo e à Alma
o caminho que conduz ao Reino de Deus. Tudo isto movido a dúvidas e a danças,
entregue ao luto e à ledice, até se concluir que as posses terrenas não são
mais que “pó e sombra”.
Disso mesmo tratou Michel-Richard
de Lalande ao publicar o livro com “III Leçons de Ténèbres et le Miserere à
voix seule” consagrado à Semana Santa, em que, de certa forma, conciliando o beau chant com o tonus lamentationum, sugeria um teatro da penitência algures entre
a alegria e a agrura.
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