Os editores desconfiavam de si.
Afinal, havia algo de muito duvidoso – para não dizer desleal – na sua maneira
de cantar. Debruçava-se sobre um poema e caíam-lhe do decote pontos de
exclamação e interrogação para cima do texto, salpicando sílabas, cinzelando a
semântica. E, por vezes, a sua voz baça parecia seguir mais facilmente essa
pontuação figurada do que a real. Depois, claro, notava-se o seu deleite em
renunciar aos andamentos dos temas, calculando o avanço que haveria de deixar
aos músicos que consigo tocavam e, mais perversamente, aos ouvintes que a
escutavam. Decididamente, não: para os preceitos de uma indústria em crise, a
braços com as operações de remoção de entulho deixado pela Grande Depressão,
era tudo demasiado ambíguo em redor de Billie Holiday. Talvez por isso chegassem
tantas partituras a cheirar a mofo às mãos de John Hammond e Bernie Hanighen,
os seus produtores iniciais na Columbia: entre as 80 canções desta antologia –
e não seria por mais 20 que se comprometeria a sua integridade, logo
evidenciada em 2007, data da sua edição original – não se vislumbra uma saída
da pena de Harold Arlen ou de Rodgers & Hart, e mesmo as mais requintadas
confeções que aqui se encontram, via Kern, Berlin ou irmãos Gerswhin,
beneficiavam de um prazo de validade dilatado graças às adaptações
cinematográficas de antigos musicais da Broadway então em voga. Tudo isto para
relembrar que sempre há quem só veja defeitos onde está apenas feitio. Ou que o
estilo de Billie Holiday se afirmou apesar da incoerência do seu repertório
primitivo. Isto é, não foi por cantar vulgaridades que se tornou menos
inesquecível.
Mas também não demora muito a
aparecer quem reconheça a virtude no lugar do vício. O ator Ralph Cooper,
assistindo a uma atuação sua no bar Hotcha, em início de carreira, aconselhou
que Frank Schiffman a contratasse para o teatro Apollo dizendo-lhe: “Nunca
ouviste ninguém cantar tão lentamente, tão ociosamente e tão arrastadamente”, o
que nem se afigura como um elogio. Era Billie quem o recordava em “Lady Sings
the Blues”, a autobiografia que publicou em 1956, numa altura em que vivia na
pele de Nossa Senhora das Dores. O livro deve mais à fantasia do que ao facto e
possui uma das primeiras frases mais citadas do seu tempo: “A minha mãe e o meu
pai eram ainda duas crianças quando se casaram. Ele tinha dezoito, ela
dezasseis e eu três anos.” Mas tem com a verdade a relação – infiel – que o pai
manteve com a mãe: os seus pais nunca se casaram, apesar das idades baterem
certo. Seja como for, para estômagos fortes, é uma leitura que permite
enquadrar o fatalismo que imprimiu às suas interpretações finais ou, no mínimo,
o estabelecimento de uma cronologia: “a minha mãe tinha 13 anos quando eu nasci,
a 7 de abril de 1915”; “a minha prima Ida batia-me loucamente e não era com um
cinto nem com açoites no rabo mas aos murros”; “havia uma casa de putas na
esquina da nossa rua e eu fazia-lhes recados”; “ser violada é a pior coisa que
pode acontecer a uma mulher e estava a acontecer comigo aos dez anos”;
“transformei-me numa prostituta de vinte dólares”; “fui parar à cadeia”; “andei
pela 7ª Avenida à procura de trabalho e estava desesperada quando cheguei ao Pod
and Jerry’s Log Cabin. Disse que era bailarina e pedi um teste, mas metia dó. O
pianista teve pena de mim, e disse: ‘Sabes cantar, pequena?’. Eu respondi: ‘Claro
que sei cantar, mas o que é que isso adianta?’. Pedi-lhe que tocasse o ‘Trav’lin’
All Alone’. Fez-se silêncio. Quando cheguei ao fim estavam todos a chorar”;
“comecei a saltitar entre clubes”; “apareceu John Hammond, que me apresentou a
Benny Goodman e me arranjou uma parceria com o Teddy Wilson e a sua orquestra”;
“não me venham com histórias sobre meninas pioneiras em viagem por montes e
vales ameaçados por peles-vermelhas. Fui para oeste em 1937 com o Artie Shaw e
os montes estavam cheios de tarados brancos”; “não conseguimos nenhum sítio
onde me alugassem um quarto e, nos restaurantes, nem na cozinha me deixavam
comer”; “a minha mãe só tinha trinta e oito anos quando morreu. Acho que me vai
acontecer o mesmo. Vou ficar sempre com trinta e oito anos, quarenta no
máximo”.
Falhou por pouco, falecendo aos 44,
a 17 de julho de 1959, de um cirrose hepática, após uma sucessão de relações
abusivas (com Jimmy Monroe, Joe Guy, John Levy e Louis McKay – aliás, o único senhor
que verdadeiramente a amou foi Mister, o seu Pit Bull Terrier), condenações à
prisão e depressões alimentadas a álcool e heroína. Não se achava digna de
melhor. Mas nestas gravações – captadas entre 1935 e 1941, com Billie a andar de
pantufas em redor de Teddy Wilson, Ben Webster, Benny Goodman, Roy Eldridge,
Bunny Berigan, Artie Shaw, Lester Young, Chu Berry ou Johnny Hodges – ainda
procurava cauterizar as suas chagas. Neste momento, quando encontrava uma letra
que a fizesse sentir a sério levantava-a no ar como uma parteira a mostrar um bebé
recém-nascido aos pais. Em registos subsequentes, cantava e parecia novamente
aquela adolescente a pedir uma audição no Log Cabin, interrogando-se: “O que é
que isso adianta?” Só ela o saberia.
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