Contrariamente a um acheiropoieta, este sudário de que fala Barry Guy é farto em
impressões digitais. Pelo menos na perspetiva que o vincula à cortina azul que,
a 5 de fevereiro de 2003, durante uma conferência de imprensa de Colin Powell junto
à sala de reuniões do Conselho de Segurança das Nações Unidas, cobria a famosa
tapeçaria que reproduz “Guernica”. Segundo Guy, a imagem teria gerado “uma
mensagem demasiado literal acerca dos horrores da guerra”, pelo que “foi necessário
saneá-la”. Calcula-se que tenham sido as equipas televisivas a solicitar a colocação
de um pano de fundo neutro no local a fim de atenuar a poluição visual das
linhas de Picasso nos respetivos enquadramentos, coisa que, por sinal, nem era a primeira vez que acontecia, mas, seja como for, trata-se
de um contexto decisivo para a compreensão deste “The Blue Shroud”. Até porque,
ao longo dos seus 70 minutos, além de se cantarem versos de Kerry Hardie que enumeram
símbolos de “Guernica” (o guerreiro caído com a mão esquerda estigmatizada, a
mãe lamuriante com o filho morto nos braços, a pomba, etc.), escutam-se referências
a “armas de destruição maciça” e à “Resolução 1441”. Aliás, a terminar, Savina Yannatou
repete “Resolução 1441” em inglês, espanhol e português, o que remete para a
cimeira das Lajes de 16 de março de 2003, quando Bush, Blair, Aznar e Barroso
explicaram que “ou o regime iraquiano se desarma por iniciativa própria ou será
desarmado à força.” Nesse instante quase se disputa esta espécie de damnatio memoriae que caracteriza a peça. Mas há outro paralelismo
com “Guernica”, quando se evocam elementos do cristianismo vindos da história
da música – das “Sonatas do Rosário”, de Biber, à “Missa em Si menor”, de Bach.
É então que se percebe que, tal como a de Picasso, esta obra – executada por catorze
intérpretes de exceção, e onde se destacam Michel Godard, Agustí Fernández, Ben
Dwyer, Maya Homburguer e Michael Niesemann – se destina aos tiranos que um dia
pensaram nisto, que Éluard, em “A Vitória de Guernica”, assim resumiu: “A vossa
morte vai servir de exemplo.”
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