O
toque de alvorada era dado por ‘Beautiful Sunday’, de Daniel Boone, repetido ad nauseam no genérico de abertura de um
programa da manhã da TBS, a Tokyo Broadcasting System, a ponto de vir a
tornar-se o single internacional mais
vendido de sempre no Japão. Nas rádios tocava ininterruptamente, disputando a
supremacia de descendentes da Sylvie Vartan de “Cherchez l’idole”, como Momoe
Yamaguchi. Milhares de adolescentes liam manga
pela cidade, indiferentes ao rugido atómico de centenas de Godzillas e às mecanizadas
palavras de ordem de batalhões de robôs. As ruas estavam limpas, as pessoas mostravam
consideração, as salas de concerto enchiam. Na noite de 1 de abril de 1976, ao
passar por uma rulote de hambúrgueres, Barry Harris teve, por fim, a
confirmação de que o mundo estava virado do avesso. Correu para o hotel, onde o
aguardava uma comitiva chegada da Nova Iorque de “Taxi Driver”, e contou que,
na rulote, tinha acabado de ouvir ‘Hot House’ (Tadd Dameron) e ‘Cheryl’ (Charlie
Parker)!
Como
viria a escrever Don Schlitten, em notas de apresentação destes “Live in
Tokyo”, era impossível não se sentir gratidão pelo nível de apreço em que as
plateias japonesas tinham “uns velhos Beboppers”.
Porque era merecido, claro, mas mais ainda porque lhes era devido. No caso do
pianista, adiantava até o seguinte: “Quando expliquei ao Barry o tipo de
receção que o esperava em Tóquio, ele não me levou muito a sério. Duas semanas
depois, terminada a digressão, sabíamos que tinha sido uma das grandes
experiências das nossas vidas.” O fundador da Xanadu mantinha isto em mente: “É
que na cultura japonesa tem-se em grande estima os feitos do passado, estima
essa que se manifesta de muitas formas. Pelo culto dos mortos, por exemplo, ou
através da continuação de certas tradições artísticas.” Como Barry Harris dizia
numa entrevista à Down Beat, em 1963: “Houve um tempo em que cada músico se
deixava influenciar pelos seus predecessores. Recorrendo a um termo
sentimentalão, pelos seus heróis.”
A
Harris, os fãs pareciam conceder-lhe o que jamais conhecera: respeito. Toca
‘Fukai Aijo’ (composta na digressão de modo a retribuir o muito carinho recebido)
e é fácil supô-lo invadido por uma comoção indeterminada, em que se misturava o
reconhecimento pela admiração dos nipónicos e a aceitação pungente do relativo
desinteresse que lhe votavam os seus compatriotas. E o mesmo se aplica a Charles
McPherson e a Jimmy Raney e a Sam Jones e Leroy Williams, a secção rítmica que
acompanhava os três líderes, noite após noite, em cada uma das dez atuações
nesta viagem pelo Japão. Escuta-se este trio de “Live in Tokyo” e percebe-se
que os instrumentistas permaneciam com a convicção de que estavam sós, mas,
também e em simultâneo, com a mercê de se encontrarem num sítio onde se sabiam senhores
de si. Juntos, através de ‘Tea for Two’, ‘I’ll Remember April’, ‘Ornithology’,
‘These Foolish Things’, ‘Darn That Dream’ ou ‘Stella by Starlight’, fazem da
visita aos standards um inventário de
assombros.
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