É
fácil imaginá-lo a ver a neve cair e a espalhar sarampo pelas calçadas de
Viena. Com pouco mais de um metro e meio, da rua, dir-se-ia uma criança melancólica
a passar a hora do recreio nostalgicamente à janela. Então, de aspeto ausente e
sobrancelhas sublinhadas pela fadiga, deixava-se congelar, até a sua vigília se
confundir com a de um busto. Tossia, resignado, e é possível que a vacuidade do
seu olhar, mas também o misto de meiguice e receio que trazia estampado no
rosto desde a infância, lembrassem o semblante de um bovino. Febril e
pustulento, sem apetite, com a boca beliscada por mucosas e dores no corpo, aos
31 anos, e com a morte anunciada, Franz Schubert (1797-1828) caía no limbo.
É uma
dramatização comum, embora muitos tenham para si que a conjetura em sentido contrário
não se provaria menos verdadeira. Como Britten, por exemplo, que considerava
que os “dezoito meses mais produtivos e férteis da história da música”
correspondem ao “período em que Schubert compôs ‘Viagem de Inverno’, a
‘Sinfonia em Dó maior’, as três últimas sonatas para piano ou o ‘Quinteto de
Cordas em Dó maior’.” Asserção que o Ebène confirma. Na descrição dos seus
membros, o quinteto, com um segundo violoncelo (Capuçon) no lugar de uma mais
canónica segunda violeta, é “uma obra-prima, de um equilíbrio magistral:
desafia mas não intimida, é inefável mas acessível, digna de admiração mas
energizante.” Trata-se do canto do cisne do seu compositor, não fosse “Schwanengesang”,
um conjunto de canções póstumo, reclamar o direito a invocar em exclusivo a
metáfora. Agora, torna a sentir-se aquele seu irresistível ímpeto, apto em dissipar
rumores e recriminações e cuja capacidade de produzir trabalho parece depender
da constante surpresa que é, afinal, e contra todas as evidências, a vida
prosseguir de modo normal mesmo quando se vê ameaçada. Indicação de que o
sifilítico Schubert não sujeitava à lei marcial os seus instintos e razão para
crer que a amargura e a desilusão que o acompanharam no derradeiro estertor não
anestesiaram a poesia que lhe corria nas veias. É esse herói romântico que o
Ebène recupera, numa interpretação que recorda o que John Gingerich apelidava
de “consciência dividida”. Cá estão as invulgares harmonizações, diáfanas num
instante e opacas no seguinte, aquelas curvas melódicas, espessas e, em
simultâneo, próximas da desintegração, as procissões, as romarias e as
fanfarras de um Império alicerçado em estados de alma e empirismo, a milhas do
absolutismo Habsburgo.
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