Tempera
o seu humor com muito vinagre, Henry Threadgill. E não seria de espantar que à
sucessão de distinções e subvenções de que se vê súbito beneficiário (do
Pulitzer para música ao Prémio Artista da Fundação Doris Duke) reagisse pela invocação
de um dos seus álbuns mais emblemáticos, dizendo que isto é tudo “Too Much
Sugar For a Dime”, um dos aforismos preferidos com que o seu pai, inveterado jogador
dado ao apotegmatismo e à manutenção da compostura, acolhia repentinas marés de
sorte. Mas não. Na realidade, no momento em que se torna milionário, e basta
seguir-lhe as declarações no último mês, o saxofonista e compositor parece ter
consciência de que chegou a hora de baixar a guarda. Aliás, coincide com este
período de acoladas sem precedentes o lançamento da primeira gravação de um
novo conjunto por si dirigido.
Em
“Old Locks and Irregular Verbs” tocam os pianistas Jason Moran e David Virelles
(em simultâneo), os saxofonistas Roman Filiu e Curtis Macdonald (os dois no
saxofone alto), o violoncelista Christopher Hoffman, o tubista José Davila e o
baterista Craig Weinrib, e o que aí se escuta é uma música que não se deixa
ferir pela sua própria força nem travar pelas suas próprias torções, com
códigos, rituais, gentilezas, indelicadezas, esperanças e abandonos que só lhe
pertencem. É dedicada a Lawrence D. “Butch” Morris, compagnon de route de Threadgill falecido em janeiro de 2013,
vítima de cancro (estiveram lado a lado no octeto de David Murray na alvorada dos
anos 80 e, quiçá cansados de sufocar velhos anseios, mais tarde, participaram ambos
em “Vietnam: Reflections”, de Billy Bang). E talvez por isso não tenha
Threadgill levado para a sessão de estúdio nenhum outro instrumento que aquele
que partitura, púlpito e postura tornam completo, e que Morris, que o patenteou
sublinhando-lhe a adesão à física, nas notas de apresentação que escreveu para
a caixa “Testament: A Conduction Collection” assim definiu: “a Condução não se
refere apenas ao ato de improvisação conduzida, mas é também a carga elétrica e
a resposta corpo a corpo: a transmissão imediata de informação e o resultado.”
Trata-se do típico registo em que os crentes logo vislumbram uma ocorrência
tangível do sagrado mas que, pelo contrário, se notabiliza, precisamente, ao projetar
vulnerabilidades muito terrenas. Ou seja, não obstante Threadgill possuir mais
que uma vizinhança casual com a transcendência, esta sua obra-prima tem domicílio
nas vidas partilhadas de um par de amigos cuja experiência na guerra teve
consequências mais profundas que a simples repulsa da morte, cuja arte serviu invariavelmente
para evocar aqueles que souberam resistir às humilhações perpetradas por
poderes que a moral condena (e o hábito tolera) e cuja mensagem foi a da
independência total face aos hieráticos bustos da tradição e da vanguarda. É o palmo
inicial de um mundo novo que só agora se começa a tatear.
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