De
olhos sumidos, com o corpo encurvado para a frente, inexcedivelmente
obsequioso, ao longe, dir-se-ia um japonês de estatura média prestes a ser
engolido pelo piano. E para o regime soviético, que de tudo fez para que a sua
aparição não se confundisse com a reabilitação de uma saudade qualquer, parecia
tão estranho e insignificante quanto isso. A viagem tinha sido longa, a sua
agenda tolhida pela emoção e o ensaio geral algo nervoso, com a equipa da CBS,
que o acompanhava desde Nova Iorque, a esquadrinhar cada milímetro da sala em busca
do plano definitivo. Uma hora e meia depois, terminado o recital, acenava aos
camarotes e levava um lenço branco à testa e ao pescoço denunciando sinais de
fadiga e rendição, mas, no fundo, não queria arredar pé do palco. Estava radiante e os
seus gestos indiciavam um tipo de intimidade com a plateia que os factos, em
rigor, desmentiam. Mas nada disso interessava. Aos 82 anos, a recapitulação de
uma sina familiar tingida pela tragédia não tinha sido tão difícil quanto o
esperado: nesse 20 de abril de 1986, Vladimir Horowitz era não só remetido aos
seus antepassados como, também, restituído à sua própria imortalidade. Mas as
coisas não tinham começado bem. Ouça-se o Scarlatti com que abriu o concerto e
logo se perceberá que lhe custou a apaziguar tantos receios e desassossegos. Aliás,
só no Allegretto da “Sonata em Mi
maior”, de Mozart, domesticou a sua impaciência e apenas nos “Prelúdios”, de
Rachmaninoff, e nos “Estudos”, de Scriabin, espantou da mente uma ideia absurda
que dela se havia apoderado: a de que, ao fim de seis décadas de exílio, o
regresso ao país que julgava ter abandonado em definitivo era menos a expressão
de uma vontade pessoal do que uma exigência da política externa norte-americana,
desejosa de corresponder aos sinais de Gorbatchov. Afinal, era mais do que
suficiente arriscar a posteridade. Ou seja, quem tinha, a custo, atravessado o
nadir da sua carreira não precisava agora da pressão acrescida de ver depender das
suas ações o destino dos russos. Ainda assim, escutando-o no Grande Auditório
do Conservatório de Moscovo, e pertencente ou não à nomenclatura, houve certamente
quem tivesse concluído que, a tocar como há muito não o fazia, o pianista, mais
do que a derreter os corações da audiência, estava, na realidade, a desembargar
o gelo do corpo da Guerra Fria. *
* na edição da revista E de hoje foi publicada uma versão resumida deste texto
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