12 de novembro de 2016

Shostakovich: Cello Concertos 1 + 2 (Decca, 2016)



Havia ainda um mundo a construir. Mas, a meses de se tornar militante do Partido Comunista, Shostakovich interessava-se mais por aqueloutro em desintegração. Atente-se ao Moderatto do “Concerto para Violoncelo Nº 1”, de 1959: escuta-se um murmúrio de cordas a fazer a cama ao instrumento solista, que logo prossegue pelo caminho dos sonhos, ora plangitivo, ora nostálgico, perdido numa nosaria de dissonâncias que nem o consolo da fantasia permite; depois dá-se por uma trompa, também ela solitária, e o violoncelo, cada vez mais distante da realidade e fervendo em harmónicos, é acalentado por uma celesta. Não se trata de um Adagio ao estilo do da sexta sinfonia mas a sua função é semelhante: realçar um estado de espírito por contraste. Aliás, trata-se do único andamento do concerto em que o compositor prescinde da obsessiva repetição do seu distinto monograma musical, o DSCH (Ré, Mi bemol, Dó e Si no sistema de notação musical germânico), uma alusão às iniciais da transliteração alemã do seu nome, Dmitri Schostakowitsch, que repercute neuroticamente pelo Allegretto, na Cadenza e no Allegro com a urgência de um despertador que não se consegue desligar. Tinham-se ido Zhdanov e Estaline mas era como se nem um nem outro tivessem saído de dentro de si. Shostakovich continuava a falar em código. Há uma dúzia de anos Weilerstein tocou o primeiro concerto a Mstislav Rostropovich. “Estava sentado à minha frente, com as pontas dos pés junto a mim”, conta em notas de apresentação. “Deu-me um conselho que nunca esquecerei: disse-me que quanto mais emoção somos impelidos a transmitir na música de Shostakovich, mais nos devemos esforçar por ocultá-la.” É uma contradição de que prescinde em absoluto no “Concerto para Violoncelo Nº 2”, de 1966. Cá está o Shostakovich em ambulatório, com o ocasional internamento na ala psiquiátrica (os insistentes apelos no violoncelo, as ideias fixas nos fagotes, o macabrismo da marimba no Largo), dado ao sarcasmo e à misantropia, intoxicado por Freud (no scherzo), pertinaz no erro de calcular que a mesma ação pode ter resultados diferentes (as cinco repetições da cadência no Allegretto final) e fatalmente tocado pelo pessimismo. Havia um mundo a construir? A resposta é negativa. Era a única certeza ao seu alcance, então e até ao fim dos seus dias.

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