Havia ainda um mundo a construir.
Mas, a meses de se tornar militante do Partido Comunista, Shostakovich
interessava-se mais por aqueloutro em desintegração. Atente-se ao Moderatto do “Concerto para Violoncelo
Nº 1”, de 1959: escuta-se um murmúrio de cordas a fazer a cama ao instrumento
solista, que logo prossegue pelo caminho dos sonhos, ora plangitivo, ora
nostálgico, perdido numa nosaria de dissonâncias que nem o consolo da fantasia
permite; depois dá-se por uma trompa, também ela solitária, e o violoncelo,
cada vez mais distante da realidade e fervendo em harmónicos, é acalentado por uma
celesta. Não se trata de um Adagio ao
estilo do da sexta sinfonia mas a sua função é semelhante: realçar um estado de
espírito por contraste. Aliás, trata-se do único andamento do concerto em que o
compositor prescinde da obsessiva repetição do seu distinto monograma musical,
o DSCH (Ré, Mi bemol, Dó e Si no sistema de notação musical germânico), uma
alusão às iniciais da transliteração alemã do seu nome, Dmitri Schostakowitsch,
que repercute neuroticamente pelo Allegretto,
na Cadenza e no Allegro com a urgência de um despertador que não se consegue
desligar. Tinham-se ido Zhdanov e Estaline mas era como se nem um nem outro
tivessem saído de dentro de si. Shostakovich continuava a falar em código. Há uma dúzia de anos Weilerstein tocou o primeiro concerto a Mstislav Rostropovich.
“Estava sentado à minha frente, com as pontas dos pés junto a mim”, conta em
notas de apresentação. “Deu-me um conselho que nunca esquecerei: disse-me que
quanto mais emoção somos impelidos a transmitir na música de Shostakovich, mais
nos devemos esforçar por ocultá-la.” É uma contradição de que prescinde em
absoluto no “Concerto para Violoncelo Nº 2”, de 1966. Cá está o Shostakovich em
ambulatório, com o ocasional internamento na ala psiquiátrica (os insistentes
apelos no violoncelo, as ideias fixas nos fagotes, o macabrismo da marimba no Largo), dado ao sarcasmo e à misantropia,
intoxicado por Freud (no scherzo),
pertinaz no erro de calcular que a mesma ação pode ter resultados diferentes
(as cinco repetições da cadência no Allegretto
final) e fatalmente tocado pelo pessimismo. Havia um mundo a construir? A
resposta é negativa. Era a única certeza ao seu alcance, então e até ao fim dos
seus dias.
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