Em
1888, na introdução de “Scheherazade”, Rimsky-Korsakov escrevia assim: “Convencido
da falsidade e falta de fidelidade da mulher, o sultão Shariar fez a solene
promessa de que mandaria executar cada uma das suas futuras esposas após a
respetiva noite de núpcias. Mas Sherazade conseguiu salvar-se contando-lhe
histórias durante mil e uma noites. Movido pela curiosidade, o sultão foi diferindo
a ordem de cumprimento da sentença até que, por fim, abandonou em definitivo a
sangrenta jura.” Daqui, como se sabe, deixou-se o russo guiar pelo mundo de
Aladino, Simbad, Ali Babá, et al., do
qual regressaria com uma das grandes suítes sinfónicas do seu tempo em mãos.
Já o
norte-americano John Adams, que em fevereiro fará 70 anos, vive na era do
politicamente correto e, antes que desse por si invadido pela ambiguidade, ao
deixar-se inspirar pelas mesmíssimas “Mil e Uma Noites” não passou do preâmbulo.
Como o próprio explica: “Pôr-me a pensar no que seria uma Sherazade dos dias de
hoje trouxe-me à memória exemplos famosos de mulheres com as vidas em risco, como
a ‘rapariga do sutiã azul’, na praça Tahrir, espancada, humilhada, arrastada
pelas ruas.” Foi então que decidiu compor uma “sinfonia dramática”, para
recorrer à designação de Berlioz, na qual “o papel principal é interpretado
pelo violino”. Nem sempre atraente ou estruturalmente bem resolvida, a peça não
deixa de ser a sua melhor na última década. Há momentos em que tudo é impasse,
indefinição, intriga, e nem por isso se dispersa a atenção. Noutros, a massa
orquestral é insidiosa, insistente, inclemente e dela tenta soltar-se Leila
Josefowicz, a heroína, ora desafiante, ora dominada, nunca menos que determinada.
Sente-se a sombra do Bartók do “Concerto para Violino Nº2” aqui, a do Sibelius
do Op. 47, acolá. No final do terceiro andamento dão-se uns tutti que são como uma condenação à
morte. O violino reage com uma frase curta, arrastada, ferida, os sinais de
vida reduzidos a raiva, rancor e repulsa pelo mundo dos homens.
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