À frente de um grupo que cruza jazz e rap, o compositor e
saxofonista norte-americano Steve Lehman abre sexta-feira na Fundação Calouste Gulbenkian a 34ª edição do Jazz em Agosto
Editado em agosto de 2016, “Sélébéyone” era à primeira vista
um objeto confuso e curioso e ambicioso e ambíguo. Atribuído a Steve Lehman, dir-se-ia
que contava mais para o ranking de
pares: com Lehman e HPrizm (ou Kyle Austin, vulgo High Priest, dos Antipop
Consortium) de um lado e Maciek Lasserre e Bandimic (o senegalês Gaston Bamar
Ndoye) do outro – isto é, um saxofonista e um MC para cada banda, ou melhor, em
cada flanco um designer sonoro de
distinto perfil autoral nos domínios do jazz e da eletroacústica e um rapper blindado pela capa de um
super-herói. Daí, quiçá, esse título, que do uolofe se traduz por “interseção”
e que aponta na direção da liminaridade. “O que há de novo, aqui”, diz agora
Lehman, por email, “é que quem compôs
as estruturas para os instrumentos acústicos (o Maciek e eu) foi igualmente
responsável por todo o trabalho de sampling,
programação, sequencialização e produção. Não tenho conhecimento de nenhum
outro projeto do género em que as coisas se tenham passado assim. E acho que
isso nos permitiu integrar elementos de maneira diferente.” Talvez por ter perfeita
noção de que este tipo de ensaios tem por hábito cair no limbo, é cauteloso nas
respostas, manobrando por entre conceitos, esquivando-se a leituras
maniqueístas: ou seja, a tocar, dá mostras de ter prazer em diluir fronteiras;
a falar, parece acusar a responsabilidade de as construir.
Nascido em 1978, em Nova Iorque, e hoje docente na
Universidade da Califórnia (onde orienta cursos de composição, jazz e
tecnologia aplicada), Lehman possui uma discografia que se assemelha a uma
autobiografia intelectual, com pontos altos em “Interface” (2004), “Travail,
Transformation and Flow” (2009) ou “Mise en Abîme” (2014). Compôs ainda para
orquestras e agrupamentos de câmara, foi bolseiro Guggenheim, recebeu o prémio
Artista da Fundação Doris Duke, fez o bacharelato e o mestrado em Wesleyan, o
doutoramento na Universidade de Columbia e estudou no IRCAM, em Paris. E, claro,
neste “Sélébéyone” o desafio é o do costume: como conciliar perspetivas tão
diversas numa só? Logo quando incorpora pela primeira vez a voz humana nas suas
composições e num contexto com tanta bagagem, como o do hip hop. “Bom”, admite, “fico satisfeito por toda a gente pensar
nesta música como ‘música do Steve Lehman’. O facto de a minha identidade
enquanto compositor vir ao de cima independentemente do contexto musical é algo
que me agrada. Por exemplo, os meus estudos em cognição (Quando é que uma nota
musical isolada começa a soar como muitas diferentes? Quando é que sentimos o
tempo de uma peça a abrandar ou a aumentar? Coisas assim) terão informado
algumas das minhas escolhas.”
No fundo, e passe a redundância, a questão da perceção é central
nisto tudo. E, nessa perspetiva, ainda que em termos puramente psicológicos, tornar-se-á
impossível ignorar este período de tensões à escala global à medida que se ouve
o disco. Aliás, há momentos no CD em que se pressente uma deriva subliminar do
campo das ideias universais para o pólo oposto, muito marcado por uma espécie
de hermenêutica da suspeição. É que há qualquer coisa ominosa em “Sélébéyone”…
Como se a predição por agouros aí adquirisse uma importância funcional. “Foi
algo que apareceu referido em algumas críticas ao disco, sim”, reconhece. “Há uma certa escuridão, que
foi muito deliberada. Mas ao mesmo tempo há imensa abstração em termos harmónicos,
rítmicos, texturais… Algo com que os ouvintes podem não estar familiarizados. É
provável que a escuridão de que se fala venha daí.”
Sélébéyone,
o grupo (cujo núcleo se vê reforçado por Carlos Homs em piano e teclados,
Damion Reid à bateria e Drew Gress ou Christopher Tordini no baixo), é composto
por um trio de nacionalidades, inclui três sectários do sufismo, canta os
louvores de marabutos lendários e é um veículo para poesia engajada – a título
de exemplo, com versos particularmente problemáticos como “E é por isso que
Ísis me recebe de braços abertos”, em que a referência nilótica fica
escorregadia em virtude da inevitável associação entre o nome da deusa da
mitologia egípcia e o acrónimo em língua inglesa para o Estado Islâmico do
Iraque e da Síria (ISIS). Mas embora reconheça que as presidenciais
norte-americanas foram como que o pano de fundo para o disco, Lehman não
acredita que o tenham afetado de modo significativo. Talvez não. Mas, com
retroativos, a subsequente eleição de Donald Trump de certeza que sim. Ou pelo
menos acrescentou-lhe uma camada de significado. Agora, quando se escuta HPrizm
a declamar “Eles criminalizam a vítima/ E depois instalam a verdade// Rostos
contrastantes e drásticos, moldados do plástico/ Riem-se para nós perversamente//
Alegremente reajustando o passado/ Rapidamente/ Logo a seguir à tragédia/
Casualmente// Agora a máscara caiu-lhes/ A mascarada acabou” é difícil ignorar este
clima político da pós-verdade em que a todo o custo o gabinete de Trump procura
transformar os eufemísticos ‘factos alternativos’ em verdades insofismáveis. A
este respeito, Lehman é evasivo: “Em alguns casos a música veio antes das
letras. Noutros, o texto apareceu primeiro. Há algumas oportunidades em reagir
ao que se passa em termos vocais. E há momentos em que vocalistas e
instrumentistas improvisam em conjunto. Mas, regra geral, o Maciek e eu demos
completa liberdade ao HPrizm e ao Gaston para desenvolverem conteúdos.” Há
versos de um e outro que obrigam efetivamente a uma transferência de sentidos
entre música e letra. Mas também há instantes em que a aderência é recíproca,
como quando se ouve “O pulso sobre a bateria// Esperança em mostrar o que
significa/ Abrir cadeados/ Pensar ao lado/ Tudo é híbrido”, e, no fundo, os
dois MC falam de um só assunto: o que seria do mundo se a história humana fosse
diferente – mais afrocêntrica, porventura.
Como
é óbvio, Lehman sabe que vida e arte não se equivalem de forma tão literal. Há
aqui solos ao saxofone alto (ele) e ao soprano (Lasserre) que procedem do berço
do jazz, e uma secção rítmica que os sustenta, há eletrónica, uma sensibilidade
pós-drum’n’bass ao nível das
programações, rap, mas também uma relutância considerável em ceder à lógica
discursiva de cada tendência explorada, como se desta específica interseção se
quisesse expurgar a bílis da história. Mas nem sempre conseguem os
instrumentistas e os vocalistas lutar contra a corrente. E é aí que trazem à
memória as estratégias de DJ Premier ou dos coletivos Bomb Squad, Native Tongue
e Beatminerz a par, digamos, das de Steve Coleman circa “A Tale of 3 Cities” ou das de Branford Marsalis nos Buckshot
LeFonque, em que a combinação entre jazz e rap se provava ou demasiado forte ou
demasiado fraca, invariavelmente didática para ser levada a sério, excessivamente
presa a ideologias passadas para evitar o pasticho. É desse atavismo que
Lehman, Lasserre, HPrizm e Bandimic (principalmente este, que se expressa em
uolofe) se tentam libertar, com as esperadas consequências: quando são
bem-sucedidos, cortam laços com valores de mercado, resistem às forças da
globalização e transpõem um limite particular aos MC com consciência política e
social, que é aquele que os reduz amiúde à condição de empresários da desgraça.
“Tenho esperanças de manter este grupo unido”, conclui Lehman. “Adorava que
atuássemos e gravássemos até ao fim dos meus dias, que é exatamente o mesmo que
desejo para o meu trio ou para o meu octeto ou para os Fieldwork [que divide
com Vijay Iyer e Tyshawn Sorey]. Além de que, ao vivo, ainda andamos a descobrir
o que conseguimos fazer com esta música. Em que medida a conseguimos estimular.
Temos de lidar com uma textura sónica muito densa, e que apresenta muitos
desafios. Mas estamos excitados com a ideia de a desenvolver e transformar a
cada noite que passa.” Dependerá, sem dúvida, da negociação que façam com o
efémero. E aí, quem sabe, pode ser que se escreva no Jazz em Agosto um novo
capítulo para o rap.
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