22 de julho de 2017

Agenda: Steve Lehman & Sélébéyone no Jazz em Agosto



À frente de um grupo que cruza jazz e rap, o compositor e saxofonista norte-americano Steve Lehman abre sexta-feira na Fundação Calouste Gulbenkian a 34ª edição do Jazz em Agosto

Editado em agosto de 2016, “Sélébéyone” era à primeira vista um objeto confuso e curioso e ambicioso e ambíguo. Atribuído a Steve Lehman, dir-se-ia que contava mais para o ranking de pares: com Lehman e HPrizm (ou Kyle Austin, vulgo High Priest, dos Antipop Consortium) de um lado e Maciek Lasserre e Bandimic (o senegalês Gaston Bamar Ndoye) do outro – isto é, um saxofonista e um MC para cada banda, ou melhor, em cada flanco um designer sonoro de distinto perfil autoral nos domínios do jazz e da eletroacústica e um rapper blindado pela capa de um super-herói. Daí, quiçá, esse título, que do uolofe se traduz por “interseção” e que aponta na direção da liminaridade. “O que há de novo, aqui”, diz agora Lehman, por email, “é que quem compôs as estruturas para os instrumentos acústicos (o Maciek e eu) foi igualmente responsável por todo o trabalho de sampling, programação, sequencialização e produção. Não tenho conhecimento de nenhum outro projeto do género em que as coisas se tenham passado assim. E acho que isso nos permitiu integrar elementos de maneira diferente.” Talvez por ter perfeita noção de que este tipo de ensaios tem por hábito cair no limbo, é cauteloso nas respostas, manobrando por entre conceitos, esquivando-se a leituras maniqueístas: ou seja, a tocar, dá mostras de ter prazer em diluir fronteiras; a falar, parece acusar a responsabilidade de as construir.

Nascido em 1978, em Nova Iorque, e hoje docente na Universidade da Califórnia (onde orienta cursos de composição, jazz e tecnologia aplicada), Lehman possui uma discografia que se assemelha a uma autobiografia intelectual, com pontos altos em “Interface” (2004), “Travail, Transformation and Flow” (2009) ou “Mise en Abîme” (2014). Compôs ainda para orquestras e agrupamentos de câmara, foi bolseiro Guggenheim, recebeu o prémio Artista da Fundação Doris Duke, fez o bacharelato e o mestrado em Wesleyan, o doutoramento na Universidade de Columbia e estudou no IRCAM, em Paris. E, claro, neste “Sélébéyone” o desafio é o do costume: como conciliar perspetivas tão diversas numa só? Logo quando incorpora pela primeira vez a voz humana nas suas composições e num contexto com tanta bagagem, como o do hip hop. “Bom”, admite, “fico satisfeito por toda a gente pensar nesta música como ‘música do Steve Lehman’. O facto de a minha identidade enquanto compositor vir ao de cima independentemente do contexto musical é algo que me agrada. Por exemplo, os meus estudos em cognição (Quando é que uma nota musical isolada começa a soar como muitas diferentes? Quando é que sentimos o tempo de uma peça a abrandar ou a aumentar? Coisas assim) terão informado algumas das minhas escolhas.”

No fundo, e passe a redundância, a questão da perceção é central nisto tudo. E, nessa perspetiva, ainda que em termos puramente psicológicos, tornar-se-á impossível ignorar este período de tensões à escala global à medida que se ouve o disco. Aliás, há momentos no CD em que se pressente uma deriva subliminar do campo das ideias universais para o pólo oposto, muito marcado por uma espécie de hermenêutica da suspeição. É que há qualquer coisa ominosa em “Sélébéyone”… Como se a predição por agouros aí adquirisse uma importância funcional. “Foi algo que apareceu referido em algumas críticas ao disco, sim”, reconhece. “Há uma certa escuridão, que foi muito deliberada. Mas ao mesmo tempo há imensa abstração em termos harmónicos, rítmicos, texturais… Algo com que os ouvintes podem não estar familiarizados. É provável que a escuridão de que se fala venha daí.”

Sélébéyone, o grupo (cujo núcleo se vê reforçado por Carlos Homs em piano e teclados, Damion Reid à bateria e Drew Gress ou Christopher Tordini no baixo), é composto por um trio de nacionalidades, inclui três sectários do sufismo, canta os louvores de marabutos lendários e é um veículo para poesia engajada – a título de exemplo, com versos particularmente problemáticos como “E é por isso que Ísis me recebe de braços abertos”, em que a referência nilótica fica escorregadia em virtude da inevitável associação entre o nome da deusa da mitologia egípcia e o acrónimo em língua inglesa para o Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS). Mas embora reconheça que as presidenciais norte-americanas foram como que o pano de fundo para o disco, Lehman não acredita que o tenham afetado de modo significativo. Talvez não. Mas, com retroativos, a subsequente eleição de Donald Trump de certeza que sim. Ou pelo menos acrescentou-lhe uma camada de significado. Agora, quando se escuta HPrizm a declamar “Eles criminalizam a vítima/ E depois instalam a verdade// Rostos contrastantes e drásticos, moldados do plástico/ Riem-se para nós perversamente// Alegremente reajustando o passado/ Rapidamente/ Logo a seguir à tragédia/ Casualmente// Agora a máscara caiu-lhes/ A mascarada acabou” é difícil ignorar este clima político da pós-verdade em que a todo o custo o gabinete de Trump procura transformar os eufemísticos ‘factos alternativos’ em verdades insofismáveis. A este respeito, Lehman é evasivo: “Em alguns casos a música veio antes das letras. Noutros, o texto apareceu primeiro. Há algumas oportunidades em reagir ao que se passa em termos vocais. E há momentos em que vocalistas e instrumentistas improvisam em conjunto. Mas, regra geral, o Maciek e eu demos completa liberdade ao HPrizm e ao Gaston para desenvolverem conteúdos.” Há versos de um e outro que obrigam efetivamente a uma transferência de sentidos entre música e letra. Mas também há instantes em que a aderência é recíproca, como quando se ouve “O pulso sobre a bateria// Esperança em mostrar o que significa/ Abrir cadeados/ Pensar ao lado/ Tudo é híbrido”, e, no fundo, os dois MC falam de um só assunto: o que seria do mundo se a história humana fosse diferente – mais afrocêntrica, porventura.

Como é óbvio, Lehman sabe que vida e arte não se equivalem de forma tão literal. Há aqui solos ao saxofone alto (ele) e ao soprano (Lasserre) que procedem do berço do jazz, e uma secção rítmica que os sustenta, há eletrónica, uma sensibilidade pós-drum’n’bass ao nível das programações, rap, mas também uma relutância considerável em ceder à lógica discursiva de cada tendência explorada, como se desta específica interseção se quisesse expurgar a bílis da história. Mas nem sempre conseguem os instrumentistas e os vocalistas lutar contra a corrente. E é aí que trazem à memória as estratégias de DJ Premier ou dos coletivos Bomb Squad, Native Tongue e Beatminerz a par, digamos, das de Steve Coleman circa “A Tale of 3 Cities” ou das de Branford Marsalis nos Buckshot LeFonque, em que a combinação entre jazz e rap se provava ou demasiado forte ou demasiado fraca, invariavelmente didática para ser levada a sério, excessivamente presa a ideologias passadas para evitar o pasticho. É desse atavismo que Lehman, Lasserre, HPrizm e Bandimic (principalmente este, que se expressa em uolofe) se tentam libertar, com as esperadas consequências: quando são bem-sucedidos, cortam laços com valores de mercado, resistem às forças da globalização e transpõem um limite particular aos MC com consciência política e social, que é aquele que os reduz amiúde à condição de empresários da desgraça. “Tenho esperanças de manter este grupo unido”, conclui Lehman. “Adorava que atuássemos e gravássemos até ao fim dos meus dias, que é exatamente o mesmo que desejo para o meu trio ou para o meu octeto ou para os Fieldwork [que divide com Vijay Iyer e Tyshawn Sorey]. Além de que, ao vivo, ainda andamos a descobrir o que conseguimos fazer com esta música. Em que medida a conseguimos estimular. Temos de lidar com uma textura sónica muito densa, e que apresenta muitos desafios. Mas estamos excitados com a ideia de a desenvolver e transformar a cada noite que passa.” Dependerá, sem dúvida, da negociação que façam com o efémero. E aí, quem sabe, pode ser que se escreva no Jazz em Agosto um novo capítulo para o rap.

Sem comentários:

Enviar um comentário