21 de outubro de 2017

Brahms: Peças Para Piano (Decca, 2017)


A elaborar notas de apresentação para este disco, pede-lhe Misha Donat para sintetizar o que significa, ao certo, voltar à “Sonata para Piano Nº 3 em Fá menor”, Op. 5, de Johannes Brahms (1833-1897), e Nelson Freire, que a gravou pela primeira vez há 50 anos, sai-se com uma platitude zen: “É como quando você vê de longe uma montanha imensa, e, depois, ao se aproximar, começa a reparar nos rios e nas árvores que a constituem.” Corretíssimo. “Primeiro há uma montanha / Depois não há montanha nenhuma / Depois há”, cantava Donovan, em ‘There Is a Mountain’, precisamente em 1967, dando seguimento à formulação com que Qingyuan Weixin (século IX) resumia a nossa relação com a natureza das coisas: “O primeiro estágio é ver a montanha como montanha e o rio como rio; o segundo, ver a montanha não como montanha e o rio não como rio; e o terceiro, ver a montanha ainda como uma montanha e o rio ainda como um rio.” Nada disto teria muita importância, claro, não fosse o facto de lembrar um axioma comum a Brahms (pelo menos, ao Brahms crepuscular das Peças e Fantasias para piano, de 1892 e 1893), a Freire e, pelos vistos, a budistas: que há uma etapa na vida a que só tem acesso quem já passou pela experiência do desapego. 

Seria a fase do eremita errante, no hinduísmo. O que traz à memória a entrevista de Freire a “O Globo”, pouco antes de completar 70 anos (entretanto fez 73, na quarta-feira passada): “[A minha vida] É de casa para o aeroporto. Do aeroporto para casa.” Brincadeirinha, como diria um brasileiro. A reter alguma coisa da entrevista, seria isto: “Tenho medo da degeneração física. Idade assusta. Mas a gente nunca sabe, também. Medo de morrer, não tenho. A sensação que incomoda é do corte.” Ou quando Debora Ghivelder, a jornalista, lhe pergunta se acredita na vida depois da morte, e ele diz: “Acredito. Mas não nesse negócio de que existe isso e aquilo. Trata-se de uma incógnita. É isso, eu acredito na incógnita”. Escute-se, aqui, a sonata, como é óbvio, mas fundamentalmente o conjunto de Intermezzi extraídos aos opúsculos 116, 117, 118 e 119, e ter-se-á a medida exata do quanto crê: tudo é límpido e lídimo e livre. Antes, só Walter Klien e Radu Lupu o abraçaram assim.

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