A elaborar notas de apresentação para este disco, pede-lhe
Misha Donat para sintetizar o que significa, ao certo, voltar à “Sonata para
Piano Nº 3 em Fá menor”, Op. 5, de Johannes Brahms (1833-1897), e Nelson
Freire, que a gravou pela primeira vez há 50 anos, sai-se com uma platitude
zen: “É como quando você vê de longe uma montanha imensa, e, depois, ao se aproximar,
começa a reparar nos rios e nas árvores que a constituem.” Corretíssimo.
“Primeiro há uma montanha / Depois não há montanha nenhuma / Depois há”,
cantava Donovan, em ‘There Is a Mountain’, precisamente em 1967, dando
seguimento à formulação com que Qingyuan Weixin (século IX) resumia a nossa
relação com a natureza das coisas: “O primeiro estágio é ver a montanha como
montanha e o rio como rio; o segundo, ver a montanha não como montanha e o rio
não como rio; e o terceiro, ver a montanha ainda como uma montanha e o rio
ainda como um rio.” Nada disto teria muita importância, claro, não fosse o
facto de lembrar um axioma comum a Brahms (pelo menos, ao Brahms crepuscular
das Peças e Fantasias para piano, de 1892 e 1893), a Freire e, pelos vistos, a
budistas: que há uma etapa na vida a que só tem acesso quem já passou pela
experiência do desapego.
Seria a fase do eremita errante, no hinduísmo. O que
traz à memória a entrevista de Freire a “O Globo”, pouco antes de completar 70
anos (entretanto fez 73, na quarta-feira passada): “[A minha vida] É de casa
para o aeroporto. Do aeroporto para casa.” Brincadeirinha, como diria um
brasileiro. A reter alguma coisa da entrevista, seria isto: “Tenho medo da
degeneração física. Idade assusta. Mas a gente nunca sabe, também. Medo de
morrer, não tenho. A sensação que incomoda é do corte.” Ou quando Debora
Ghivelder, a jornalista, lhe pergunta se acredita na vida depois da morte, e
ele diz: “Acredito. Mas não nesse negócio de que existe isso e aquilo. Trata-se
de uma incógnita. É isso, eu acredito na incógnita”. Escute-se, aqui, a sonata,
como é óbvio, mas fundamentalmente o conjunto de Intermezzi extraídos aos
opúsculos 116, 117, 118 e 119, e ter-se-á a medida exata do quanto crê: tudo é
límpido e lídimo e livre. Antes, só Walter Klien e Radu Lupu o abraçaram assim.
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