Rachmaninoff não se conseguia fazer entender. Mesmo
quando os jornalistas o levavam à trela, perdia-se. Estava desde 1918 em Nova
Iorque e quando lhe pediam um comentário acerca do estado de coisas na Rússia,
ele, que pertencia à primeira vaga de emigrantes saída da Revolução de Outubro,
vacilava: “Vocês não fazem ideia da desesperada saudade que sente um homem sem
lar. Aqui, até o ar é diferente.” Prokofiev, outro expatriado, dizia: “Sou
russo, isto é, o menos equipado dos homens para o exílio. Vejam os meus
compatriotas, espalhados pelo mundo mas intoxicados pelo ar do seu país”. Na
altura, dir-se-ia o reflexo de uma tendência natural para a contemplação. “Talvez
todo o russo seja uma espécie de eremita”, concluía Rachmaninoff, que, antes de
fugir à convivência com os seus, procurava paz e tranquilidade na herdade de
Ivanovka, na estepe de Tambov, onde “em vez de um vasto oceano havia campos de
trigo e centeio a perder de vista”. Em 2002, numa entrevista concedida a uma
publicação alemã, a “Klassik Heute”, perguntavam a Nikolai Lugansky se na sua
personalidade identificava alguma dessa melancolia expressa por Rachmaninoff.
“Creio que sim”, respondia o pianista. “Está na nossa índole, quiçá em virtude da
extensão e escuridão da nossa paisagem.”
Desde que Lugansky toca publicamente
Rachmaninoff – e em disco fá-lo desde 1987, tinha então 15 anos – que é nisto
que se pensa: que se está perante aquele caso, raro, de um intérprete do
compositor que não tem de se compenetrar inteiramente do pensamento alheio ao
executar-lhe as obras, como se as tivesse encontrado com domicílio na sua
própria intuição, na sua memória, na sua experiência de vida. Confirmando-o,
chegou há pouco ao mercado esta imaculada retrospetiva (trazendo a reboque as
sinfonias dirigidas por Previn), na qual se destacam os Prelúdios do opúsculo
23, apenas porque Lugansky os planeia tocar hoje ao final da tarde em Lisboa
(19h, Gulbenkian). Vêm de antes do desterro, quando o futuro parecia diferente,
menos empestado por saudades, mas a melancolia já lá estava, mascarada de outra
coisa: “Que bem que ele ouve o silêncio”, disse Gorki, quando os escutou pela
primeira vez. Podia estar a falar de Lugansky.
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