Quando
completava cinco décadas de atividade em nome próprio, Keith Jarrett renunciou
ao privilégio enunciado por alturas do seu primeiro disco de piano solo
(“Facing You”) e cancelou os seus concertos – incluindo o da última Bienal de
Veneza, em que seria agraciado com um prémio especial de carreira. Talvez tenha
sido essa a sua motivação para ir à arca frigorífica à cata desta gravação (de
julho de 2006, na mesmíssima cidade), cujo simbolismo é, até, algo redentor:
afinal, a fénix era aquele pássaro que na mitologia grega ressurgia das
próprias cinzas – tal como o Gran Teatro La Fenice, aliás, que ardeu três vezes
desde a sua construção, a última das quais em 1996, estava Jarrett a ser
devorado pela doença sistémica de intolerância ao esforço, que o pôs a sentir-se
entre a vida e a morte durante um par de anos.
Trata-se, portanto, de
renascimento, para não dizer imortalidade, que parece mal, embora Jarrett
interrompa o seu extemporâneo fluxo de improvisação, só, para a certa altura
tocar uma canção (‘The Sun Whose Rays’, da ópera cómica “Mikado”, de Gilbert
& Sullivan) que inclui estes versos: “I mean to rule the earth/ As he the
sky/ We really know our worth/ The sun and I” – isto, numa casa que testemunhou
em pleno ottocento o contorcionismo laríngeo
de acordo com Rossini, Donizetti e Bellini! Não que os grunhidos de Jarrett lhes
fiquem muito aquém: por sinal, no capítulo das vocalizações não-verbais, o
pianista seria um formidável objeto de estudo caso alguém quisesse transferir
para aquilo que faz em palco o que no artigo “Tennis grunts communicate acoustic cues to sex and contest outcome” foi
identificado em campos de ténis. Quanto ao que faz ao teclado, não
obstante a delicadeza de um par de standards,
está escrito desde 1900, em “Os Buddenbrook”, de Thomas Mann: “Há algo de
pecaminoso no excesso e sofreguidão com que cada invenção é desfrutada e
explorada, algo de desespero cínico, semelhante à ânsia de volúpia e à avidez
decadente na forma como se suga a última gota de doçura da música até à
exaustão, ao asco, ao tédio”. Até morrer, para depois renascer.
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