Sacudir
a dor - chega a Portugal o novo disco de Gal Costa na semana
em que a cantora atua no Porto e em Lisboa
Em
2011, em “Recanto”, dava voz àquilo que qualquer pessoa com mais de 40 anos sente,
de manhã, quando põe o pé fora da cama: “Dói/ Tudo dói.” Depois, em 2015, meses
antes de fazer 70 anos, decidiu chutar a dor, ali, bem para o meio do buraco na
camada de ozono, com “Estratosférica”. Agora, em “A Pele do Futuro”, conforme adianta
à imprensa brasileira, Gal Costa quis “cantar uma música de sofrimento, mas que
ao mesmo tempo que você está cantando, está dançando”, e não é preciso ser herpetólogo
nem teólogo para se dar com a serpente que se insinua, sibilante, por trás desse
seu título. Logo quem. “Jibóia sou eu”, cantava ela em ‘Musa Cabocla’, num
daqueles seus discos, raros, cujo alinhamento acolhia temas que se diriam dispostos
a provocar os que lhes estivessem colocados imediatamente antes ou depois – no
caso, em “Minha Voz” (1982), esses versos de Waly Salomão eram conduzidos pelos
de Caetano Veloso em ‘Dom de Iludir’: “Não me venha falar / Na malícia de toda
mulher/ Cada um sabe a dor/ E a delícia de ser o que é”, numa canção que
curiosamente remetia para outra muito mais antiga, de Noel Rosa, oriunda dos anos
30. Era mais ou menos com isso que nessa altura Walter Benjamin sonhava ao sugerir
que “passado, presente e futuro são tempos sobrepostos”, e é por partilhar
dessa intuição que Marcus Preto, diretor artístico de “A Pele do Futuro”, afirma
agora que “os tempos seguem cronologia peculiar e se cruzam a todo instante.” Do
mesmo modo, Gal disse que o disco é como “olhar para frente, mas também para trás”, coisa
que, como se sabe, tem corrido mal à música ocidental desde Orfeu.
Mas Gal, como Caetano, habita um “ocidente ao ocidente do ocidente” e
sabe contrapor um mito a outro como quem num álbum põe uma canção a seguir à
outra – aqui, terá preferido antes pensar em Perseu, que evitou ser
transformado em pedra pelo olhar de Medusa ao observá-la só pelo reflexo do seu
escudo. É que, como tem contado, a ideia para o disco surgiu quando o filho lhe “entrou pelo
quarto com Gloria Gaynor cantando ‘I Will Survive’ e disse: ‘Mamãe, duvido
que você conheça!’” Enganava-se, claro. Mas foi quando ouviu o desabafo que há
40 anos converte nas pistas de dança gente em estátuas de Rodin – “At first I
was afraid, I was petrified/ Kept thinking I could never live without you by my
side/ But then I spent so many nights thinking how you did me wrong/ And I grew
strong” – que Gal entendeu que, quanto muito, podia ver o passado refletido
numa bola de espelhos. De facto, o melhor de “A Pele do Futuro” é uma variação
sobre o tema em registo ora disco sound,
ora quiet storm: “Você vale a luta/ Mas
por favor, meu amor, me escuta/ Viver comigo vive sim/ Mas também vive sem mim”,
em ‘Sublime’ (Dani Black); “Fomos felizes/ E felizes fomos/ E se já não somos/ Não
se preocupe não”, em ‘Palavras no Corpo’ (Silva/Omar Salomão); “Amar sozinho
também é amor”, em ‘Cuidando de Longe’ (Marília Mendonça); “Vou seguir a minha
vida/ Não sou mais uma menina/ Tenho que enfrentar o mal/ Seja lá qual for/ Me
fortalecer na dor”, em ‘Vida que Segue’ (Hyldon), etc. Isto é Gal no seu
terreno predileto, que é aquele que os Earth, Wind & Fire apelidaram de
‘Boogie Wonderland’ ao refletir exatamente sobre as mesmíssimas coisas: “The
mirror stares you in the face/ And says: Baby, uh, uh, it don't work/ You say
your prayers though you don't care/ You dance and shake the hurt.” Nem mais.
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