Entre inúmeros exemplos, no jazz, sempre que o tema é a
devoção, o que salta à memória é aquela inclinação à piedade tão bem evidenciada
por Carlos Santana e John McLaughlin nos materiais gráficos de “Love Devotion
Surrender” (1973) – de branco, sentados no chão, de pernas e mãos cruzadas em
veneração especial por Sri Chinmoy. Agora, Dave Douglas não vai a ponto de
encomendar notas de apresentação ao seu guru, mas é nestes termos que explica ao
que vem: “Este ‘Devotion’ tem por objeto uma amálgama de canções com cerca de
200 anos [do hinário ‘A Harpa Sagrada’] que o Uri e eu temos vindo a tocar em
conjunto [vide ‘Present Joys’, 2014]. Ficámos contentíssimos por ter o
extraordinário e sempre surpreendente Andrew Cyrille a nosso lado, na bateria. A
preparação para esta gravação veio a provar-se um humilde ato de dedicação,
concentração, amor e, finalmente, de devoção.” Parece que Chinmoy sempre é para
aqui chamado. Afinal, num texto reproduzido precisamente no disco desses seus
acólitos, o líder espiritual falou de um obstáculo interposto entre uns e outros,
de uma barreira que impede que os seres humanos transmitam o que lhes vai na
alma, que se deve, concluía, a não terem suficiente amor nas suas vidas: isto,
claro está, porque “o amor é o elemento indivisível [e divinizante] que nos
torna unos com o resto do mundo”.
Douglas é um compositor algo túrgido, mas,
também, nos últimos 30 anos, dos mais carismáticos e intelectualmente
destemidos – um agente empenhado em lembrar que, tal como dizia Heraclito, a
mudança é a única constante da vida. No confronto com o cânone – no caso, hinos
religiosos – não resiste a identificar qualidades que devem ser alteradas: de
“A Harpa Sagrada” extrai a paixão, que de seguida, e ao mesmo tempo, expurga de
qualquer traço de puritanismo. E em nove extáticos originais remete para essa base,
apenas, quando prolonga repentinamente a duração de certa frase ou quando diminui
o grau de resolução das suas cadências – isto é, quando dá relevo à sua
inerente plasticidade. Não terá sido por acaso que, no passado, dedicou um tema
a Edward Said, que, um dia, citando Eliot, explicou que a nossa sobrevivência
depende de sabermos ir atrás dos “Outros ecos/ [Que] Habitam o jardim”. A sua
devoção é essa.
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