7 de setembro de 2019

Dave Douglas/Uri Caine/Andrew Cyrille “Devotion” (Greenleaf, 2019)


Entre inúmeros exemplos, no jazz, sempre que o tema é a devoção, o que salta à memória é aquela inclinação à piedade tão bem evidenciada por Carlos Santana e John McLaughlin nos materiais gráficos de “Love Devotion Surrender” (1973) – de branco, sentados no chão, de pernas e mãos cruzadas em veneração especial por Sri Chinmoy. Agora, Dave Douglas não vai a ponto de encomendar notas de apresentação ao seu guru, mas é nestes termos que explica ao que vem: “Este ‘Devotion’ tem por objeto uma amálgama de canções com cerca de 200 anos [do hinário ‘A Harpa Sagrada’] que o Uri e eu temos vindo a tocar em conjunto [vide ‘Present Joys’, 2014]. Ficámos contentíssimos por ter o extraordinário e sempre surpreendente Andrew Cyrille a nosso lado, na bateria. A preparação para esta gravação veio a provar-se um humilde ato de dedicação, concentração, amor e, finalmente, de devoção.” Parece que Chinmoy sempre é para aqui chamado. Afinal, num texto reproduzido precisamente no disco desses seus acólitos, o líder espiritual falou de um obstáculo interposto entre uns e outros, de uma barreira que impede que os seres humanos transmitam o que lhes vai na alma, que se deve, concluía, a não terem suficiente amor nas suas vidas: isto, claro está, porque “o amor é o elemento indivisível [e divinizante] que nos torna unos com o resto do mundo”.

Douglas é um compositor algo túrgido, mas, também, nos últimos 30 anos, dos mais carismáticos e intelectualmente destemidos – um agente empenhado em lembrar que, tal como dizia Heraclito, a mudança é a única constante da vida. No confronto com o cânone – no caso, hinos religiosos – não resiste a identificar qualidades que devem ser alteradas: de “A Harpa Sagrada” extrai a paixão, que de seguida, e ao mesmo tempo, expurga de qualquer traço de puritanismo. E em nove extáticos originais remete para essa base, apenas, quando prolonga repentinamente a duração de certa frase ou quando diminui o grau de resolução das suas cadências – isto é, quando dá relevo à sua inerente plasticidade. Não terá sido por acaso que, no passado, dedicou um tema a Edward Said, que, um dia, citando Eliot, explicou que a nossa sobrevivência depende de sabermos ir atrás dos “Outros ecos/ [Que] Habitam o jardim”. A sua devoção é essa.

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