Como pancadas à boca de cena, “El sombrero de tres
picos” abre com o eco de um tacão e um ruflar de castanholas. Não é preciso
muito mais para situar a ação. E o que se lhe segue – está, em palco, o moleiro
a ensinar as horas a um melro – havia sido descrito por Federico García Lorca
meses antes, no seu primeiro livro (“Impresiones y paisajes”, 1918): “As
sombras vão-se erguendo e esfumando (…) e escuta-se pelo ar o chirriar de
ocarinas e flautas de cana.” Lorca pretendia descrever Granada – tal como
Falla, aliás, que emendou o final da sua obra após uma visita à cidade –, e a
vaguear pelo bairro de Albaicín, no ponto onde todas as ruas e caminhos se
cruzam, o poeta deu numa noite escura com um fantástico cunhal assombrado por
medos, pelo latido dos cães e por guitarras dolentes, “o Albaicín trágico da
superstição, das bruxas necromantes que deitam as cartas, dos esquisitos rituais
ciganos, dos amuletos.” Calma, que não adianta ir à procura no Airbnb – essa
Granada do mau-olhado e das almas penadas já não existe. Sabe-lo bem Pablo
Heras-Casado [na foto, com Carmen Romeu e Marina Heredia na casa-museu Manuel de Falla], que aí nasceu, e que, este verão, assinalando o centenário da
estreia de “El sombrero…”, aproveitou as propriedades únicas do complexo
palaciano da Alambra para apresentar este programa.
Na altura, num depoimento
divulgado à comunicação social, explicava que se tinha deixado motivar pela
vontade de se proximar “da essência, da ideia original, do verdadeiro texto de
Falla”, que quis desviar de uma leitura folclórica. Falava do Falla cosmopolita
que viveu em Paris, “próximo de Ravel, de Debussy ou, como é óbvio, de
Stravinsky”, que conseguiu identificar numa pontiaguda partitura de “mil e uma
arestas” (passe o trocadilho) que “surpreende pela sua forma poliédrica, afeta
ao cubismo e muito distante de qualquer ideia preconcebida de carácter
costumbrista.” Escusado será dizer, é raro encontrar uma interpretação, assim,
tão europeísta e agnóstica de “El sombrero…”, tão disposta a resistir à abismal
sensualidade que invade os seus acordes ou à vertigem que despertam as suas
síncopes. Talvez por isso, em contrapartida, surja, aqui, um “El amor brujo”
praticamente em transe, empestado de maldições, com a cantora de flamenco
Marina Heredia a trazer à memória o que disse um dia Lorca sobre La Niña de los
Peines – que já não era bem uma voz mas, sim, “um jorro de sangue que ganhava
dignidade através da dor e sinceridade”. Na época, Falla e Lorca iam em excursões
pela serrania andaluza, estranhando-se de si até, por fim, se encontrarem. Nestas
viagens de ida e volta, Heras-Casado lembra que, por vezes, é preciso ir até um
bocadinho mais longe de casa.
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