No verão de 2018, pelo telefone, a propósito de “Both
Directions at Once”, Ravi Coltrane fazia de Richard Attenborough, em “Parque
Jurássico”, exclamando: “Quem comparar o que aqui está com aquilo que o meu pai
vinha de fazer em quarteto, e principalmente com o que viria a fazer de seguida,
encontra a peça que faltava no seu puzzle.”
Nos dias que correm, resgatar ao olvido um “álbum perdido” de John Coltrane
passa mesmo por engenharia genética – e o sucesso da operação foi de tal ordem,
aliás, que a Impulse insiste em manipular-lhe o ácido desoxirribonucleico. Desta
feita, graças à descoberta de uma sessão de estúdio inédita, de 24 de junho de
1964, em que Coltrane, McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones – ali, entre
“Crescent” e “A Love Supreme” – gravaram de modo muito deliberado, não haja
dúvida, um punhado de temas para “Le Chat dans le sac”, do cineasta canadiano
Gilles Groulx. Contrariamente a “Both Directions at Once”, hélas, não possui inéditos, mas, sim – e, ao que tudo indica, por
sugestão do próprio Groulx –, novas versões de ‘Naima’ (estreada em “Giant
Steps”, em 1960), de ‘Village Blues’ (com origem em “Coltrane Jazz”, de 1961),
de ‘Like Sonny’ (idem), de ‘Traneing
In’ (com procedência no LP “John Coltrane with the Red Garland Trio”, de 1958)
e uma reformulação de ‘Out of This World’, de Harold Arlen e Johnny Mercer (tema
de abertura do álbum “Coltrane”, de 1962), fraudulentamente rebatizada como
‘Blue World’. Temperamentais, excêntricas, mas ao mesmo tempo tão humanamente
vitais e transigentes, surgem no filme excertos de quase todas, e só as
desconhecia por completo quem nunca leu “Jazz in the Movies”, de David Meeker (Talisman,
1977), ou quem nunca viu o filme (disponível há anos no sítio do National Film
Board of Canada).
Groulx sabia bem o que queria. E tão importante quanto aquilo que nos
diz sobre o quarteto de Coltrane, em pleno processo histórico de articulação
intercultural, é o que nos revela “Le Chat dans le sac” acerca de um certo cinema
– no caso, e em oposição ao estigma que marcou a década, um cinéma direct, como se dizia no Québec,
que se baseava mais na observação concreta da realidade em curso do que em
crises imaginárias chegadas de outro mundo qualquer (o único momento
verdadeiramente utópico no filme dá-se quando Claude olha para a câmara e confessa
que se tornou colaborador de um jornal para expressar o que lhe “vai no âmago”
e “chegar às pessoas”, abençoado seja). Está, por isso, tomado por aquele
impulso algo narcísico que, para citar meia dúzia de obras-primas, havia levado
Cassavetes a Charles Mingus (“Sombras”, 1958), Godard a Martial Solal (“O Acossado”,
1959), Naruse a Toshiro Mayuzumi (“Quando uma Mulher Sobe as Escadas”, 1960),
Antonioni a Giorgio Gaslini (“A Noite”, 1961), Polanski a Krzysztof Komeda (“A
Faca na Água”, 1962) ou, porque não, Lopes a Manuel Jorge Veloso (“Belarmino”,
1964): o de delegar no jazz uma noção de intimidade que um mundo em
desintegração total torna interdita e troca por nada. Quanto a isso, Groulx não
podia ser mais sincero: o filme inicia-se com Claude e Barbara a terminarem a
sua relação ao som de ‘Naima’, tema que Coltrane havia dedicado a uma mulher e
que, agora, gravava quando vivia com outra, e que neste contexto acaba por libertar
o casal de si mesmo, sugerindo, como afirmou Pessoa, que a vida não basta. Porquê
“Blue World”, então? Porque, apesar de tudo, e como na época cantava Vinicius,
é “bom viver no azul”. Talvez
Coltrane encontrasse conforto na ideia.
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