Por mais espectral que se afigure, ou, quiçá, por
isso mesmo, há na música de Saariaho uma inebriante sede de presenças – um
teatro de sombras, em busca pela unidade existencial, sim, mas marcado pelo signo
da incompletude. E escutar a sua obra, em termos algo simplistas, é permanecer adstrito
a essa fenda que se abre no espaço e no tempo. Como é óbvio (em “Circle Map”), não
admira que se socorra da poesia desse decantador de ausências que é Rumi: “Não
sou feito de terra, água, ar ou fogo// Não sou do paraíso, ou deste mundo// O
meu lugar é sempre o não-lugar”, escreveu o persa em “As Obras de Xamece de
Tabriz”, 700 e tal anos antes do António Variações de ‘Estou Além’. Aqui, de
modo muito apropriado, o místico é ouvido mas jamais visto – na voz de Arshia
Cont, em off, os seus versos lidos, gravados
e reproduzidos, como se a orquestra passasse a estar assombrada pelo fantasma
do seu próprio solista. Quem se recordar dos registos fonográficos de Raudive
(dos mortos, dizia ele), sabe que isto é de levantar os cabelos: e quando Cont,
com o som da recitação manipulado, a fim de imitar a fala de uma criança,
declama “Sou tão pequeno que mal posso ser visto”, estamos já, de facto, no
território do biopsicólogo Jaak Panksepp, que associou os “arrepios musicais”,
como lhes chamava, a um sistema sinalizador biológico primitivo (ex.: entre os
primatas, quando mãe e cria estão perto um do outro mas por algum motivo perdem
o contato visual, o grito da mãe faz eriçar o pêlo da cria).
De carência e
afeto trata igualmente “Vers toi qui es si loin”, dedicada a Peter Herresthal e
baseada na derradeira ária de “L’Amour de loin” (a ópera que a finlandesa
compôs há coisa de 20 anos, com libreto
de Amin Maalouf), cheia de ressonâncias de Rumi, claro, mas, e apesar de Los
Panchos o terem cantado melhor, em ‘Piel Canela’, capaz de lembrar uma oração
islâmica, que diz: “Onde quer que eu vá – somente Tu/ Onde quer que eu pare –
somente Tu”. Virada a oriente está também a Arturiana “Graal théâtre”, um concerto
para violino alimentado a lascas da escala arábica, espécie de épico em que os
heróis de Wagner surgem incorpóreos, desmaterializados e de átomos dispersos.
Exatamente o que se passa em “Neiges”, que obriga, com calafrios, a voltar a
Rumi: “Seja a neve derretendo/ Lave-se de si.”
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