Tinham
o olhar chamuscado pela desconfiança e pelo desdém, estriado pela troça e pelo
temor. E faziam questão em deixar-se fotografar cercados de volutas de fumo
branco, eucarístico, contínuo, contrário aos sinais dos índios, no qual se
embrulhavam como numa mortalha. Do mundo sabiam o nome dos mártires, que
cantavam, em refrães que tanto pareciam enxames envenenados por agoiros quanto
alados rifões pela paz. O seu messias, Hailé Selassié, em 1963, num discurso às
Nações Unidas, leu-lhes o manifesto: “Enquanto não for permanentemente
desacreditada a filosofia que declara uma raça superior a outra; enquanto
existirem cidadãos de primeira e de segunda; enquanto a cor da pele for mais
importante do que a cor dos olhos; enquanto não forem garantidos a todos por
igual os mais básicos direitos humanos; até esse dia, os sonhos de paz,
cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma
ilusão, perseguida mas jamais alcançada. Igualmente, enquanto não forem
superados e destruídos os ignóbeis regimes que suprimem os nossos irmãos em
Angola, Moçambique e África do Sul; enquanto a compreensão, a tolerância e a boa
vontade não substituírem o fanatismo, os preconceitos e a malícia; enquanto não
se levantarem e falarem como seres livres todos os africanos, iguais aos olhos
dos homens, como são no céu; até esse dia, o continente africano não conhecerá paz.
Lutaremos, se necessário, e sabemos que iremos vencer, pois somos confiantes na
vitória do bem sobre o mal.”
Com
espuma na voz, e ideologia convertida em cinzas, outra coisa não repetiam
Winston Rodney (Burning Spear) e Joseph Hill (Culture) em 1978, quando gravaram
estes discos. Como pano de fundo, uma Jamaica à beira da guerra civil, com
aviões enviados pela CIA a vomitar armas sobre os bairros de lata de Kingston
como quem semeia ruínas e o FMI a esvair a economia em sangue com
extorsionárias taxas de juro. Ainda assim, o facto do ano foi o “One Love Peace
Concert”, com Bob Marley a juntar em palco Michael Manley e Edward Seaga como
quem obriga irmãos desavindos a fazer as pazes. Mas sabe-se que os rastafáris
estavam do lado de Manley e de medidas sociais (sistema nacional de saúde,
escola pública, salário mínimo, programas de literacia para adultos, reforma
agrária) que se diriam saídas da pena de Marcus Garvey. “Social Living” fala de
tudo isso – a reedição inclui as versões dub
dos temas – de modo perfeitamente exponencial, e com Rodney estão os membros
dos Aswad (Brinsley Forde, Angus Gaye, Donald Griffiths, George Oban e Courtney
Hemming), bem como Sly Dunbar e Robbie Shakespeare. Também aos Culture (de
Hill, Albert Walker e Kenneth Paley) se juntaram baterista e baixista para as
sessões que, entre 78 e 79, a Front Line lançou enquanto “Harder Than the
Rest”, “Cumbolo” e “International Herb” (um quarto álbum, “Black Rose”, então
arquivado, permanecia até aqui inédito). E o que se ouve é a promoção da
dignidade, da consciência, da união e de tudo o que se deve fazer por amor.
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