13 de junho de 2015

Festival Gnaoua, 2015



Erguendo-se entre o público, uma jovem perde o controlo dos seus gestos. Aliás, dir-se-ia animada unicamente pelos movimentos da trupe Hmadcha, de que se aproxima, hesitante, escoltada por ululações e pela suspeita de que já não será senhora da sua vontade. Usa um lenço esmeralda e uma jelaba turquesa, mantém os olhos fechados e, tomando por modelo uma torre de extração de petróleo a perfurar o solo, desloca mecanicamente o braço direito de cima para baixo. À sua volta, cantam, dançam e tocam tambores membros da irmandade, amordaçando sorrisos como se aos seus ouvidos fossem segredadas as melhores anedotas no momento mais inoportuno, até que a música termina e ela cai de rojo, em pranto. “É o hal, o transe. Já passa”, diz um confrade, agitando um turíbulo e dando sinal para que a atuação prossiga. Perto da meia-noite, guiada pelo guembri do Maâlem Lotfi Benali, com o castanholar dos qraqab a coreografar-lhe as emoções, a jovem levanta-se novamente, desta feita contagiando os pufes em seu redor, apesar de haver quem logo escape para as galerias superiores do Dar Souiri com o receio de contrair uma infeção. Ninguém percebe muito bem o que está a ouvir (os poemas gnaoui são um labirinto dialetal), mas crê-se pressentir uma qualquer fração da verdade. Na cabeça de muitos, o que interessa saber é o que se esconde na fração à qual lhes é vedado o acesso. Há coisa de 30 anos, descrevendo uma cena semelhante, Abdelkader Mana, um incansável cronista da cidade e autor do recente “Les rivages de pourpre: Essaouira-Mogador”, tanto identificava os que respeitavam intimações do mundo sobrenatural quanto os que se limitavam a reconhecer manifestações de patologia indeterminada. Para os gnaoua não haverá umas sem as outras.

É esse estatuto simbólico que estas 18 edições do Festival Gnaoua têm transformado. Há, até, um livro consagrado ao tema, “Trajectoire des musiciens Gnawa”, da investigadora Zineb Majdouli, em que se avaliam as dimensões teatrais dos rituais gnaoua no contexto desestabilizador das artes performativas e em cujo prefácio se contrabandeia uma reveladora confissão: “Com origem numa família marroquina de classe média, respeitadora dos preceitos do islão e herdeira de uma tradição que sempre cultivou o saber, era algo que rejeitava. A própria palavra trazia-me arrepios à espinha. São negros, pobres, músicos e detêm um poder: o de curar por meios muito pouco ortodoxos. Parti para os gnaoua com o mal-estar do desprezo e do medo envolvido em curiosidade e admiração.” E pode dizer-se que em Essaouira descobriu uma operação que descaraterizava as cerimónias sem desacreditar o mistério.

Dirigindo-se a jornalistas, sobre outra coisa não fala Neila Tazi, organizadora do festival, abandonando à última hora os clichés que acompanham este simbólico ingresso na idade adulta mas jamais traindo uma conceção maternal do certame. Escutando-a, entende-se que prefere “preservar este património local” a estimulá-lo repetidamente através do contacto com as forças do mercado global, que deseja “regressar às raízes” ou que receia que a crescente comercialização da música gnaoua promova a evolução de expressões menos autênticas. Com embaraço, revela só agora estarem a transcrever, traduzir e registar os textos dos seus praticantes. Será um passo no bom caminho, apesar de remontar à abolição da escravatura a mercantilização da música gnaoua e, na sua base, não possuir existência histórica uma estirpe cultural imaculadamente protegida de influências externas. Talvez se trate de uma questão de dignidade.

É um valor indispensável aos discursos que introduziram o tema a debater em conferência, “Mulheres de África. Criar, empreender”, que sob a categoria da pluralidade se organizou em quatro mesas-redondas: “Famílias em Revolução”, “Mulheres e Criação”, “A Nova Visibilidade Profissional das Mulheres” e “Mulheres e Política”. Houve lugar a destemidas alocuções (da nigeriana Adjaratou Fatou Ndiaye, da senegalesa Ken Bogul ou das malianas Awa Meité e Oumou Sangaré), discutiram-se códigos civis que mais não são que sistemas de discriminação, esmiuçaram-se diferenças entre autoridade e poder, resumiu-se o aborto a um direito e ninguém se livrou da nuvem aforística que a historiadora franco-tunisina Sophie Bessis espalhou sobre a sala: “Em muitas sociedades africanas, tudo se transformou e todas as resistências e medos se conjugaram para que nada efetivamente mudasse”.

Fazendo eco da sentença, na praça Moulay Hassan, durante o mais radical dos concertos de convidados internacionais (o dos reagrupados Les Ambassadeurs, do Mali), Salif Keita perfumou-se com vaidade face à inesperada presença em palco da sua compatriota Sangaré, que impediu de chegar ao microfone. Foi de uma terrível poesia na sua indiferença, à medida que feéricos solos de Cheick Tidiane Seck e Amadou Bagayoko abafavam as faíscas entre os cantores. Também o habitual aspeto de laboratório se ressentiu, com pelo menos um encontro (o de Kenny Garrett com Hassan Boussou) a não sair da página do programa, embora a celífera união da banda do nigeriano Tony Allen com Mohamed Koyou tenha redimido as demais. Outra coisa que não muda nos cinco palcos do festival é um desfilar de maâlems (de Hamid El Kasri, Omar Hayat, Mohamed Koyou, Hassan Boussou ou Mokhtar Guinéa) tropeçando uns nos outros. Ou seja, no seio da comunidade gnaoua, não obstante celebrarem os mistérios do êxtase com a sua plateia como poucos, os homens equacionam publicamente a sua ambição e sacralidade enquanto permanecem invisíveis rituais privados em larga escala controlados por mulheres. Mas não vão ser necessários mais 18 anos para que um festival que tão bem resiste ao medo e ao arcaísmo dê pela falta delas.

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