Erguendo-se entre o público, uma
jovem perde o controlo dos seus gestos. Aliás, dir-se-ia animada unicamente pelos
movimentos da trupe Hmadcha, de que se aproxima, hesitante, escoltada por ululações
e pela suspeita de que já não será senhora da sua vontade. Usa um lenço esmeralda
e uma jelaba turquesa, mantém os olhos fechados e, tomando por modelo uma torre
de extração de petróleo a perfurar o solo, desloca mecanicamente o braço
direito de cima para baixo. À sua volta, cantam, dançam e tocam tambores membros
da irmandade, amordaçando sorrisos como se aos seus ouvidos fossem segredadas
as melhores anedotas no momento mais inoportuno, até que a música termina e ela
cai de rojo, em pranto. “É o hal, o
transe. Já passa”, diz um confrade, agitando um turíbulo e dando sinal para que
a atuação prossiga. Perto da meia-noite, guiada pelo guembri do Maâlem Lotfi Benali, com o castanholar dos qraqab a coreografar-lhe as emoções, a
jovem levanta-se novamente, desta feita contagiando os pufes em seu redor,
apesar de haver quem logo escape para as galerias superiores do Dar Souiri com o
receio de contrair uma infeção. Ninguém percebe muito bem o que está a ouvir
(os poemas gnaoui são um labirinto
dialetal), mas crê-se pressentir uma qualquer fração da verdade. Na cabeça de
muitos, o que interessa saber é o que se esconde na fração à qual lhes é vedado
o acesso. Há coisa de 30 anos, descrevendo uma cena semelhante, Abdelkader Mana,
um incansável cronista da cidade e autor do recente “Les rivages de pourpre: Essaouira-Mogador”, tanto identificava os
que respeitavam intimações do mundo sobrenatural quanto os que se limitavam a reconhecer
manifestações de patologia indeterminada. Para os gnaoua não haverá umas sem as outras.
É esse estatuto simbólico que estas
18 edições do Festival Gnaoua têm transformado. Há, até, um livro consagrado ao
tema, “Trajectoire des musiciens Gnawa”, da investigadora Zineb Majdouli, em
que se avaliam as dimensões teatrais dos rituais gnaoua no contexto desestabilizador das artes performativas e em
cujo prefácio se contrabandeia uma reveladora confissão: “Com origem numa
família marroquina de classe média, respeitadora dos preceitos do islão e
herdeira de uma tradição que sempre cultivou o saber, era algo que rejeitava. A
própria palavra trazia-me arrepios à espinha. São negros, pobres, músicos e
detêm um poder: o de curar por meios muito pouco ortodoxos. Parti para os gnaoua com o mal-estar do desprezo e do
medo envolvido em curiosidade e admiração.” E pode dizer-se que em Essaouira
descobriu uma operação que descaraterizava as cerimónias sem desacreditar o
mistério.
Dirigindo-se a jornalistas, sobre
outra coisa não fala Neila Tazi, organizadora do festival, abandonando à última
hora os clichés que acompanham este simbólico
ingresso na idade adulta mas jamais traindo uma conceção maternal do certame.
Escutando-a, entende-se que prefere “preservar este património local” a estimulá-lo
repetidamente através do contacto com as forças do mercado global, que deseja “regressar
às raízes” ou que receia que a crescente comercialização da música gnaoua promova a evolução de expressões
menos autênticas. Com embaraço, revela só agora estarem a transcrever, traduzir
e registar os textos dos seus praticantes. Será um passo no bom caminho, apesar
de remontar à abolição da escravatura a mercantilização da música gnaoua e, na sua base, não possuir
existência histórica uma estirpe cultural imaculadamente protegida de
influências externas. Talvez se trate de uma questão de dignidade.
É um valor indispensável aos
discursos que introduziram o tema a debater em conferência, “Mulheres de
África. Criar, empreender”, que sob a categoria da pluralidade se organizou em
quatro mesas-redondas: “Famílias em Revolução”, “Mulheres e Criação”, “A Nova
Visibilidade Profissional das Mulheres” e “Mulheres e Política”. Houve lugar a
destemidas alocuções (da nigeriana Adjaratou Fatou Ndiaye, da senegalesa Ken
Bogul ou das malianas Awa Meité e Oumou Sangaré), discutiram-se códigos civis
que mais não são que sistemas de discriminação, esmiuçaram-se diferenças entre
autoridade e poder, resumiu-se o aborto a um direito e ninguém se livrou da nuvem
aforística que a historiadora franco-tunisina Sophie Bessis espalhou sobre a
sala: “Em muitas sociedades africanas, tudo se transformou e todas as
resistências e medos se conjugaram para que nada efetivamente mudasse”.
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