Era
incondicionalmente pelo futuro. De tal modo que, em catálogo, entre 1958 e
1960, através de títulos que contrariavam, até, uma modéstia que se calculava congénita
(observe-se a exclamativa pretensão patente em “Something Else!!!!”, “Tomorrow
Is the Question!”, “The Shape of Jazz to Come” ou “Change of the Century”), cedo
selou Ornette Coleman um pacto com o porvir. No entanto, com o passar dos anos,
contínuas visitas a esses salmos iniciais não confirmam outra coisa que não o típico
veicular de uma sensibilidade em tudo subordinada às pulsões do indivíduo,
ainda que, sim, aparentemente desembaraçada de qualquer tutela e retida num
espaço invadido pelo charme da assimetria e pelo perfume da extravagância. Não
obstante, ao proclamar tamanha independência, estava a assinar a sentença dos
proscritos. Não houve na história do jazz percurso que tenha enfrentado maior hostilidade
que o seu.
Coleman
nasceu a 9 de março de 1930, em Fort Worth, no Texas, numa família “mais
paupérrima do que pobre”, como várias vezes lembrou. Cresceu num caminho que ia
não se sabe bem para onde, feito de terra escura, batido pelos pés de crianças encardidas
e regado por arroios de água suja, em que o tempo se acertava pelo passar dos
comboios de mercadorias e pelo ladrar dos cães a vendedores ambulantes. Charles
Moffett, futuro baterista em formações suas, e Prince Lasha, um seu antigo
imitador, eram dois dos seus amigos de infância – daqueles que por tão bem
conhecerem a sua origem melhor pareciam entender os seus segredos. Aos 14 anos,
trocando dinheiro poupado a engraxar sapatos, recebeu o seu primeiro saxofone
alto. Tocava onde podia: em casa, na igreja e na escola, mas mais
frequentemente naquele tipo de bares em que as emoções se medem a lágrimas e
navalhadas. Tinha como modelos Big Jay McNeely, Lynn Hope ou Arnett Cobb, sopradores
que espremiam ao instrumento os eflúvios mais ilícitos.
Aos
18 anos, empregado por Thomas “Red” Connors, absorveu os rudimentos do bebop:
decorou um tema de Charlie Parker e era como se tivesse um despertador dentro
de si a repetir incessantemente ‘Now Is the Time’. Viajou, numa trupe, em
terrenos minados pela segregação, acompanhando dançarinas fora de prazo e
comediantes com prazer na ordinarice (“assisti a cenas sobre as quais nem consigo
falar”, disse um dia). Cometeu a imprudência de “tocar de forma diferente”: foi
despedido, humilhado e insultado. Em Baton Rouge, no Luisiana, espancaram-no e
cuspiram-lhe em cima. Em busca de conhecidos, chegou a Nova Orleães, em 1949,
onde encontrou Ed Blackwell. Mais tarde, quando perguntaram ao baterista se já
então Ornette improvisava de maneira tão solta, ele riu-se para si e disse:
“Não, ele nessa altura era ainda mais livre.” À boleia do grupo do guitarrista
Pee Wee Crayton rumou para Los Angeles, fracassou, e só à segunda tentativa
teve sorte: conheceu Don Cherry, Charlie Haden e Billy Higgins.
Criou
originais incisivos, insinuantes, sinuosos, de aspeto instantâneo, que controversamente
guiou pelas vielas da tonalidade. Gravou-os entre maio de 1959 e março de 1961
para a Atlantic, que os lançou em discos estranhos mas nada atraídos pelo
insólito, abstratos mas sem o inchaço da retórica, transcendentes sem resvalarem
para o pietismo e inspirados no blues
sem recorrerem à Bíblia: “The Shape of Jazz to Come”, “Change of the Century”,
“This Is Our Music”, “Free Jazz”, “Ornette!”, “Ornette on Tenor”, “The Art of
the Improvisers”, “Twins” e “To Whom Who Keeps a Record”. Reúnem-se nesta caixa
e quem os ouve sente-se impelido a tomar uma posição, embora Ornette os tenha
superado. Permitem, acima de tudo, que se entenda uma frase que disse a John
Litweiler quando, em “A Harmolodic Life”, este lhe organizou a biografia: “Há
música que tem como maior qualidade preservar uma vida inteira”. Ornette
Coleman faleceu no passado dia 11, após paragem cardiorrespiratória. Permanece pelo
futuro.
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