20 de junho de 2015

Ornette Coleman “Beauty Is a Rare Thing: The Complete Atlantic Recordings” (Warner, reed. 2015)



Era incondicionalmente pelo futuro. De tal modo que, em catálogo, entre 1958 e 1960, através de títulos que contrariavam, até, uma modéstia que se calculava congénita (observe-se a exclamativa pretensão patente em “Something Else!!!!”, “Tomorrow Is the Question!”, “The Shape of Jazz to Come” ou “Change of the Century”), cedo selou Ornette Coleman um pacto com o porvir. No entanto, com o passar dos anos, contínuas visitas a esses salmos iniciais não confirmam outra coisa que não o típico veicular de uma sensibilidade em tudo subordinada às pulsões do indivíduo, ainda que, sim, aparentemente desembaraçada de qualquer tutela e retida num espaço invadido pelo charme da assimetria e pelo perfume da extravagância. Não obstante, ao proclamar tamanha independência, estava a assinar a sentença dos proscritos. Não houve na história do jazz percurso que tenha enfrentado maior hostilidade que o seu.

Coleman nasceu a 9 de março de 1930, em Fort Worth, no Texas, numa família “mais paupérrima do que pobre”, como várias vezes lembrou. Cresceu num caminho que ia não se sabe bem para onde, feito de terra escura, batido pelos pés de crianças encardidas e regado por arroios de água suja, em que o tempo se acertava pelo passar dos comboios de mercadorias e pelo ladrar dos cães a vendedores ambulantes. Charles Moffett, futuro baterista em formações suas, e Prince Lasha, um seu antigo imitador, eram dois dos seus amigos de infância – daqueles que por tão bem conhecerem a sua origem melhor pareciam entender os seus segredos. Aos 14 anos, trocando dinheiro poupado a engraxar sapatos, recebeu o seu primeiro saxofone alto. Tocava onde podia: em casa, na igreja e na escola, mas mais frequentemente naquele tipo de bares em que as emoções se medem a lágrimas e navalhadas. Tinha como modelos Big Jay McNeely, Lynn Hope ou Arnett Cobb, sopradores que espremiam ao instrumento os eflúvios mais ilícitos.

Aos 18 anos, empregado por Thomas “Red” Connors, absorveu os rudimentos do bebop: decorou um tema de Charlie Parker e era como se tivesse um despertador dentro de si a repetir incessantemente ‘Now Is the Time’. Viajou, numa trupe, em terrenos minados pela segregação, acompanhando dançarinas fora de prazo e comediantes com prazer na ordinarice (“assisti a cenas sobre as quais nem consigo falar”, disse um dia). Cometeu a imprudência de “tocar de forma diferente”: foi despedido, humilhado e insultado. Em Baton Rouge, no Luisiana, espancaram-no e cuspiram-lhe em cima. Em busca de conhecidos, chegou a Nova Orleães, em 1949, onde encontrou Ed Blackwell. Mais tarde, quando perguntaram ao baterista se já então Ornette improvisava de maneira tão solta, ele riu-se para si e disse: “Não, ele nessa altura era ainda mais livre.” À boleia do grupo do guitarrista Pee Wee Crayton rumou para Los Angeles, fracassou, e só à segunda tentativa teve sorte: conheceu Don Cherry, Charlie Haden e Billy Higgins.

Criou originais incisivos, insinuantes, sinuosos, de aspeto instantâneo, que controversamente guiou pelas vielas da tonalidade. Gravou-os entre maio de 1959 e março de 1961 para a Atlantic, que os lançou em discos estranhos mas nada atraídos pelo insólito, abstratos mas sem o inchaço da retórica, transcendentes sem resvalarem para o pietismo e inspirados no blues sem recorrerem à Bíblia: “The Shape of Jazz to Come”, “Change of the Century”, “This Is Our Music”, “Free Jazz”, “Ornette!”, “Ornette on Tenor”, “The Art of the Improvisers”, “Twins” e “To Whom Who Keeps a Record”. Reúnem-se nesta caixa e quem os ouve sente-se impelido a tomar uma posição, embora Ornette os tenha superado. Permitem, acima de tudo, que se entenda uma frase que disse a John Litweiler quando, em “A Harmolodic Life”, este lhe organizou a biografia: “Há música que tem como maior qualidade preservar uma vida inteira”. Ornette Coleman faleceu no passado dia 11, após paragem cardiorrespiratória. Permanece pelo futuro.

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