Porventura uma das mais fascinantes obras
concertantes para violoncelo dos últimos cinquenta anos, “Tout un monde lointain”
chegou já com as impressões digitais de Mstislav Rostropovich, em 1970. Ficou,
aliás, célebre um LP da HMV em que “Slava” a apresentava em disco conjuntamente
com outra encomenda sua, o “Concerto para Violoncelo” de Lutoslawski. Digna da
época que as viu nascer, a perspetiva inicial sobre as peças era dialética,
sugerindo-se que tratavam de representar o conflito entre indivíduo e sociedade
– entre aquele que aspira a ser livre e aquilo que o mantém prisioneiro. Hoje
dir-se-á que se dispensam estímulos externos para que no íntimo de cada um se desencadeiem
impulsos tão contraditórios, mas para sustentar semelhante visão bastava na
altura ler os jornais (no caso do polaco) ou indicar uma fonte de inspiração (no
caso do francês). Fala-se, como é óbvio, do enlace algo fortuito com os versos
de Charles Baudelaire. Afinal, Henri Dutilleux (1916-2013), cujo centenário de
nascimento se assinala na próxima semana, tinha-os em mente para outra
composição: um bailado, a estrear no âmbito das comemorações dos 100 anos da
morte do poeta, em 1967. Abortado o projeto (como Baudelaire escreveu, “A arte
é longa e curto o tempo”), Dutilleux aproveitou as suas leituras e transferiu para
aqui a sua atmosfera. Em termos programáticos é por um triz que “Tout un monde
lointain” não procede inteiramente de “As Flores do Mal”, a começar por um
título que remete para “A Cabeleira”: “Todo um mundo longínquo, ausente, quase
morto/ Vive dentro de ti, ó floresta aromática”. E a essa poesia em que tanto
ressoa – de perfumes “doces como oboés” e “fanfarras estranhas” a “uma nota
bizarra” ou de “suspiros de flauta” e “almas em surdina” a “orquestras a
roncar” – extrai uma peça sensual, exótica, rica em cores esplendorosas e capaz
de promover os mais furtivos prazeres. Nunca uma interpretação chamou a si tudo
o que ela possui de mais sedoso, sinuoso e sedicioso quanto esta.
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