Estava uma noite húmida em Viena, com caudas de
nevoeiro a roçar as esquinas da cidade, e a cor ambarada junto às portas do
Musikverein contrastava com o escuro do céu. Ainda assim, um sábado sem chuva prometia um
inverno menos rigoroso e faziam-se certamente conversas de circunstância nesse
sentido. A lotação da sala estava esgotada. Inserido num ciclo histórico do
Concentus Musicus Wien, ao longo do qual Harnoncourt revisitava as sinfonias de
Beethoven, o programa desse serão temperava os ânimos com um par de cantatas de
Bach. Virando as folhas de sala ninguém esperava encontrar uma carta de
despedida do maestro. Alegando problemas de saúde, anunciava que tinha de
cancelar os seus planos imediatos, mas dizia-se prenhe de ideias, comovido pela
profunda relação estabelecida com aquele auditório (que via como uma
“comunidade de pioneiros”) e, afiançando que o ciclo continuaria “no seu
espírito”, terminava com um apelo: “Mantenham-se fiéis a ele.”
Era o 5 de dezembro de 2015. Três meses depois estava morto. E hoje reza-se uma missa em sua memória na capital austríaca. Quem não puder estar presente pode sempre pôr a tocar este CD com origem exata no ciclo do Musikverein, registado em maio último. Ou pode, claro, passar revista a uma discografia com pontos altos nas sinfonias de Haydn, em algumas das que dirigiu de Mozart ou na primeira integral das de Beethoven (com a Chamber Orchestra of Europe) – aliás, se estiver inclinado para a antropologia forense poderá, até, recordar o seu Bach ou o seu Monteverdi. A presente gravação está quase a esse nível, com aquelas trompas de caça mal se agarrando aos compassos, os compassos mal a elas se agarrando no Allegro final da 5ª sinfonia. Aí, quando finalmente se passa de Dó menor para Dó maior, uma tonalidade que já nasceu com um sorriso nos lábios, é o próprio Beethoven que parece soltar as sujidades que sentia dentro de si. Já a 4ª está cheia daqueles silêncios que, como ninguém, Harnoncourt sabia transformar em pólvora. Sejamos-lhe fiéis.
Era o 5 de dezembro de 2015. Três meses depois estava morto. E hoje reza-se uma missa em sua memória na capital austríaca. Quem não puder estar presente pode sempre pôr a tocar este CD com origem exata no ciclo do Musikverein, registado em maio último. Ou pode, claro, passar revista a uma discografia com pontos altos nas sinfonias de Haydn, em algumas das que dirigiu de Mozart ou na primeira integral das de Beethoven (com a Chamber Orchestra of Europe) – aliás, se estiver inclinado para a antropologia forense poderá, até, recordar o seu Bach ou o seu Monteverdi. A presente gravação está quase a esse nível, com aquelas trompas de caça mal se agarrando aos compassos, os compassos mal a elas se agarrando no Allegro final da 5ª sinfonia. Aí, quando finalmente se passa de Dó menor para Dó maior, uma tonalidade que já nasceu com um sorriso nos lábios, é o próprio Beethoven que parece soltar as sujidades que sentia dentro de si. Já a 4ª está cheia daqueles silêncios que, como ninguém, Harnoncourt sabia transformar em pólvora. Sejamos-lhe fiéis.
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