12 de março de 2016

Hélène Grimaud: Water (Deustche Grammophon, 2016)


No verão, esquecidos em casas de férias, precisamente à beira-mar, é costume dar-se com livros amarelados que por mais leves que sejam nunca parecem caber na bagagem de quem os lê. Um deles podia ter esta sinopse gravada na contracapa: “A tórrida languidez de uma paisagem costeira cuja sensualidade e paixão subjacentes às suas terras e suas gentes só pelo calmante pulsar do mais vital dos seus elementos se mitigam.” Na realidade, recorrendo à bijuteria novelesca, é assim que Hélène Grimaud descreve as alterações de humor em “Almería”, de Albéniz. Ignara da ironia, dir-se-ia, no entanto, estar nitidamente heraclítica nas suas reflexões, evocando a zona com o clima mais seco da Europa no contexto de um recital consagrado à humidade. Solenemente declamada pela pianista, a frase é uma das muitas de que se perfaz “Water Reflections”, uma espécie de equivalente fonográfico aos extras de um DVD que remata o alinhamento deste seu novo disco. Por exemplo, “Wasserklavier”, de Berio, inspira-lhe uma desencantada “a doce melancolia da efemeridade da condição humana”, enquanto “Les Jeux d’eaux à la Villa d’Este, de Liszt, a leva a meditar sobre o “cruzamento das dimensões decorativas e místicas da água através do seu poder transformador e qualidade redentora”. Aqui está já terminantemente beatífica. Aliás, em epígrafe a um texto distendido pelo didatismo, em que nem falta uma aforística “a água é indispensável à vida”, surge esta citação de São Francisco de Assis: “Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã Água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.” De facto, antes o apócrifo panta reî, de Heraclito.

Evidentemente fluída está também a técnica de Grimaud: escuta-se a sua interpretação de “Rain-Tree Sketch II”, de Takemitsu, e imagina-se que por cada pingo de chuva que faz alegórica e mansamente deslizar até ao chão lhe assome uma ideia ao espírito; em “Jeux d’eau”, de Ravel, move-se com uma agilidade anfíbia; na “Barcarola Nº 5 em Fá sustenido menor”, Op. 66, de Fauré, consegue um som de pedal perfeitamente espumoso, a mecânica do seu piano transformando-se em hidráulica. Em transe entre cada peça – de “Transition 1” a “Transition 7” – está um conjunto de brocados sonoros da autoria de Nitin Sawhney, filigranas de um minimalismo eletrónico borbulhante, sofisticado, mas frágil, a rede poética que ampara uma Grimaud em queda livre pelas profundezas metafóricas. A terminar, ouve-se o ar a ser aspirado pela sua boca ao preparar-se para tocar “La Cathédrale engloutie”, de Debussy, e o receio maior é que, uma vez mergulhada no abismo, não mais regresse à superfície.

Sem comentários:

Enviar um comentário