No verão, esquecidos em casas de férias,
precisamente à beira-mar, é costume dar-se com livros amarelados que por mais
leves que sejam nunca parecem caber na bagagem de quem os lê. Um deles podia
ter esta sinopse gravada na contracapa: “A tórrida languidez de uma paisagem
costeira cuja sensualidade e paixão subjacentes às suas terras e suas gentes só
pelo calmante pulsar do mais vital dos seus elementos se mitigam.” Na
realidade, recorrendo à bijuteria novelesca, é assim que Hélène Grimaud
descreve as alterações de humor em “Almería”, de Albéniz. Ignara da ironia, dir-se-ia,
no entanto, estar nitidamente heraclítica nas suas reflexões, evocando a zona com
o clima mais seco da Europa no contexto de um recital consagrado à humidade. Solenemente
declamada pela pianista, a frase é uma das muitas de que se perfaz “Water
Reflections”, uma espécie de equivalente fonográfico aos extras de um DVD que
remata o alinhamento deste seu novo disco. Por exemplo, “Wasserklavier”, de
Berio, inspira-lhe uma desencantada “a doce melancolia da efemeridade da
condição humana”, enquanto “Les Jeux d’eaux à la Villa d’Este”, de Liszt, a leva a
meditar sobre o “cruzamento das dimensões decorativas e místicas da
água através do seu poder transformador e qualidade redentora”. Aqui está já
terminantemente beatífica. Aliás, em epígrafe a um texto distendido pelo
didatismo, em que nem falta uma aforística “a água é indispensável à vida”, surge
esta citação de São Francisco de Assis: “Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã
Água, que é tão útil e humilde, e preciosa e casta.” De facto, antes o apócrifo
panta reî, de Heraclito.
Evidentemente fluída está também a técnica de Grimaud: escuta-se a sua interpretação de “Rain-Tree Sketch II”, de Takemitsu, e imagina-se que por cada pingo de chuva que faz alegórica e mansamente deslizar até ao chão lhe assome uma ideia ao espírito; em “Jeux d’eau”, de Ravel, move-se com uma agilidade anfíbia; na “Barcarola Nº 5 em Fá sustenido menor”, Op. 66, de Fauré, consegue um som de pedal perfeitamente espumoso, a mecânica do seu piano transformando-se em hidráulica. Em transe entre cada peça – de “Transition 1” a “Transition 7” – está um conjunto de brocados sonoros da autoria de Nitin Sawhney, filigranas de um minimalismo eletrónico borbulhante, sofisticado, mas frágil, a rede poética que ampara uma Grimaud em queda livre pelas profundezas metafóricas. A terminar, ouve-se o ar a ser aspirado pela sua boca ao preparar-se para tocar “La Cathédrale engloutie”, de Debussy, e o receio maior é que, uma vez mergulhada no abismo, não mais regresse à superfície.
Evidentemente fluída está também a técnica de Grimaud: escuta-se a sua interpretação de “Rain-Tree Sketch II”, de Takemitsu, e imagina-se que por cada pingo de chuva que faz alegórica e mansamente deslizar até ao chão lhe assome uma ideia ao espírito; em “Jeux d’eau”, de Ravel, move-se com uma agilidade anfíbia; na “Barcarola Nº 5 em Fá sustenido menor”, Op. 66, de Fauré, consegue um som de pedal perfeitamente espumoso, a mecânica do seu piano transformando-se em hidráulica. Em transe entre cada peça – de “Transition 1” a “Transition 7” – está um conjunto de brocados sonoros da autoria de Nitin Sawhney, filigranas de um minimalismo eletrónico borbulhante, sofisticado, mas frágil, a rede poética que ampara uma Grimaud em queda livre pelas profundezas metafóricas. A terminar, ouve-se o ar a ser aspirado pela sua boca ao preparar-se para tocar “La Cathédrale engloutie”, de Debussy, e o receio maior é que, uma vez mergulhada no abismo, não mais regresse à superfície.
Sem comentários:
Enviar um comentário