Pianista e pedagogo num mundo
privado de poesia, o polaco Jerzy Zurawlew padecia: “O culto de Chopin tinha-se
esfumado. Aliás, dava frequentemente com a opinião de que ele era demasiado
romântico, que sentimentalizava a alma e anestesiava a mente. O que, por si só,
e segundo vozes críticas, seria mais do que razão para lhe excluir a obra dos
conservatórios. Achava este equívoco doloroso.” Decidiu-se por contra-atacar. E
inspirou-se ao observar façanhas desportivas entre os mais jovens. “Organizar
uma prova!”, faiscou-se-lhe na mente. Nascia o Concurso Internacional de Piano
Frédéric Chopin, em Varsóvia, com edição inaugural em 1927 e concebido para se
disputar a cada cinco anos. E tem-se provado que o espírito competitivo é
contagioso. Só na edição de 2015 se avaliaram 450 candidatos, tendo o galardão
principal ido para o sul-coreano Seong-Jin Cho. Por questões de prazos, presume-se,
entre os laureados do certame é o único ausente desta antologia. Mas incluem-se
os outros, os que ao longo dos anos deixaram à sua passagem a geografia
sentimental da capital polaca alterada como que por um terremoto, aqueles que
nunca se deixaram intimidar pela falta de intimidade da situação, os que
descobriram que tocar Chopin obriga a minar reservas estratégicas de emoção
dentro de si. Atente-se aos exemplos pré-históricos de Lev Oborin (Primeiro Prémio
em 1927), Alexandre Uninsky (1932) ou Yakov Zak (1937): um toca o Largo da “Sonata para Piano Nº 3 em Si
menor”, Op. 58, como se uma sedação lhe fosse engolindo os nervos e os
músculos, outro aproxima-se do “Estudo em Dó sustenido menor”, Op. 25, Nº 7, como
se apenas nesse momento despertasse a sua consciência de pianista e o terceiro namora
algumas das mazurcas com a possessividade de um adolescente inseguro. São
gravações históricas da Melodiya e da Polskie Nagrania que a DG resgatou. Tal
como o são as de Halina Czerny-Stefanska e Bella Davidovich (vencedoras, ex aequo, em 1949), com a azerbaijana a prolongar
o Allegro maestoso do “Concerto para
Piano Nº 1 em Mi menor”, Op 11, tal como, depois de se pôr, o sol deixa atrás
de si a luz dos seus raios, e a polaca a veicular a faustosa e anacrónica prosápia
do “Concerto para Piano Nº 2 em Fá menor”, Op. 21. Após um apontamento de Adam
Harasiewicz (1955) entra-se na era moderna, com Maurizio Pollini (1960): os
seus “12 Estudos”, Op. 25, permitem imaginar o rosto iluminado daquele que conhece
os mistérios da vida; na “Sonata para Piano Nº 2 em Si bemol menor”, Op. 35, mitiga,
até, a sensação de desconsolo que habitualmente a cerca. Depois, claro, há uma Martha
Argerich (1965) que deteta os pressentimentos dos “24 Prelúdios”, Op. 28,
abraçando a euforia mal contida com que tenta compensar uma carência ou
soltar-se de uma repressão. Há ainda por aqui Garrick Ohlsson (1970), mas é com
Krystian Zimerman (1975) e Dang Thai Son (1980) que se acede a um limbo
inatingível, a um som profundo que corre espavorido para longe de quem o tenta
escutar. Com Stanislav Bunin (1985), Kevin Kenner (1990), Philippe Giusiano
(1995) e Alexei Sultanov (1995) coroa-se o Chopin da incontinência melódica e
tudo parece cíclico (os três últimos receberam o Segundo Prémio em edições sem
vencedor, o que compromete tecnicamente o subtítulo da compilação). Yundi Li
(2000) e Rafal Blechacz (2005) mantiveram-se presos à Terra. Mas Yulianna
Avdeeva (2010) apaga a sombra que arranhava a luz da eternidade num recital que
torna a urdir a grande ilusão de Chopin. Inédito, vale pela caixa inteira.
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