2 de abril de 2016

Emil Gilels "The Complete Recordings..." (Deutsche Grammophon, 2015)


À noite, em criança, imaginava-se a dirigir uma orquestra, fechando com força os olhos e agitando os braços em emulação daqueles vetustos vultos de que ouvia falar, vicários de todas as emoções e com tanta fé nos seus próprios gestos que, do pódio, nunca olhavam a plateia por cima do ombro. Ou, então, quando não conseguia pegar ao sono, via-se debruçado sobre o piano em busca de sons como do fundo do mar tentam os pescadores extrair pérolas. Estudou precocemente e diziam-lhe ser demasiado pequeno para o que pretendia fazer. Franzino, e dado a fobias, teve professores que o levaram a querer esconder-se atrás do teclado a cada reprimenda. Adorava passear de recital em recital por Odessa, circundando a baía gelada onde os mastros dos veleiros encalhados, ao longe, pareciam catos enterrados no meio do deserto. Chegou aos concursos internacionais e aos discos nos anos 30, registos de 78 rpm em que nada faltava, mas que, pouco depois, considerou escassos em entusiasmo. A custo, e contrariamente ao que lhe ensinavam, deixou-se guiar pela intuição e passou a encarar a música como, no Carnaval, um folião fita o guarda-fatos: em busca de fantasia. Por isso foi repetindo que nunca tocava uma peça da mesma maneira, nem muitas vezes uma só peça. 

Para a Melodiya, a editora estatal russa, e ao longo da década de 50, gravou Prokofiev, Kabalevsky, Alabiev ou Medtner (títulos aqui incluídos) e o Comité Central exultava. Passou a figurar na retórica oficial e a ser fotografado como se perante o seu semblante se devesse a própria História ajoelhar. Era propriedade do Partido e decoraram-lhe o peito com medalhas (mais galardoado, só Richter). Quando em 55 chegou aos EUA, em plena Guerra Fria, encontrava-se sucessivamente em cidades onde não tinha um único amigo mas das quais partia farto em admiradores. Na DG deixou um ciclo de sonatas de Beethoven de insuspeitada ternura e inesperado carinho que só a sua imprevista morte interrompeu – em particular nos andamentos lentos, tocava-as como se nesse momento estivesse a mais no mundo qualquer outra sequência de notas. Também os seus concertos de Brahms são insubstituíveis. E as suas “Peças Líricas”, de Grieg, são uma imagem da felicidade da qual não fez esfumar em definitivo o lastro do remorso. Faleceu há 30 anos. Se reincarnasse, como contou à autora de “Great Contemporary Pianists Speak for Themselves”, Elyse Mach, “queria fazer tudo outra vez, só que melhor”. “Mas se soubesse que não tornaria a viver?”, perguntava-lhe ela. “Bem, nesse caso deixo para trás as minhas gravações”, respondeu. “Se valerem de alguma coisa, continuarei vivo.” E assim é.

Sem comentários:

Enviar um comentário