À noite, em criança, imaginava-se a dirigir uma
orquestra, fechando com força os olhos e agitando os braços em emulação
daqueles vetustos vultos de que ouvia falar, vicários de todas as emoções e com
tanta fé nos seus próprios gestos que, do pódio, nunca olhavam a plateia por
cima do ombro. Ou, então, quando não conseguia pegar ao sono, via-se debruçado
sobre o piano em busca de sons como do fundo do mar tentam os pescadores
extrair pérolas. Estudou precocemente e diziam-lhe ser demasiado pequeno para o
que pretendia fazer. Franzino, e dado a fobias, teve professores que o levaram
a querer esconder-se atrás do teclado a cada reprimenda. Adorava passear de
recital em recital por Odessa, circundando a baía gelada onde os mastros dos
veleiros encalhados, ao longe, pareciam catos enterrados no meio do deserto. Chegou
aos concursos internacionais e aos discos nos anos 30, registos de 78 rpm em
que nada faltava, mas que, pouco depois, considerou escassos em entusiasmo. A
custo, e contrariamente ao que lhe ensinavam, deixou-se guiar pela intuição e
passou a encarar a música como, no Carnaval, um folião fita o guarda-fatos: em
busca de fantasia. Por isso foi repetindo que nunca tocava uma peça da mesma
maneira, nem muitas vezes uma só peça.
Para a Melodiya, a editora estatal russa, e ao longo da década de 50, gravou Prokofiev, Kabalevsky, Alabiev ou Medtner (títulos aqui incluídos) e o Comité Central exultava. Passou a figurar na retórica oficial e a ser fotografado como se perante o seu semblante se devesse a própria História ajoelhar. Era propriedade do Partido e decoraram-lhe o peito com medalhas (mais galardoado, só Richter). Quando em 55 chegou aos EUA, em plena Guerra Fria, encontrava-se sucessivamente em cidades onde não tinha um único amigo mas das quais partia farto em admiradores. Na DG deixou um ciclo de sonatas de Beethoven de insuspeitada ternura e inesperado carinho que só a sua imprevista morte interrompeu – em particular nos andamentos lentos, tocava-as como se nesse momento estivesse a mais no mundo qualquer outra sequência de notas. Também os seus concertos de Brahms são insubstituíveis. E as suas “Peças Líricas”, de Grieg, são uma imagem da felicidade da qual não fez esfumar em definitivo o lastro do remorso. Faleceu há 30 anos. Se reincarnasse, como contou à autora de “Great Contemporary Pianists Speak for Themselves”, Elyse Mach, “queria fazer tudo outra vez, só que melhor”. “Mas se soubesse que não tornaria a viver?”, perguntava-lhe ela. “Bem, nesse caso deixo para trás as minhas gravações”, respondeu. “Se valerem de alguma coisa, continuarei vivo.” E assim é.
Para a Melodiya, a editora estatal russa, e ao longo da década de 50, gravou Prokofiev, Kabalevsky, Alabiev ou Medtner (títulos aqui incluídos) e o Comité Central exultava. Passou a figurar na retórica oficial e a ser fotografado como se perante o seu semblante se devesse a própria História ajoelhar. Era propriedade do Partido e decoraram-lhe o peito com medalhas (mais galardoado, só Richter). Quando em 55 chegou aos EUA, em plena Guerra Fria, encontrava-se sucessivamente em cidades onde não tinha um único amigo mas das quais partia farto em admiradores. Na DG deixou um ciclo de sonatas de Beethoven de insuspeitada ternura e inesperado carinho que só a sua imprevista morte interrompeu – em particular nos andamentos lentos, tocava-as como se nesse momento estivesse a mais no mundo qualquer outra sequência de notas. Também os seus concertos de Brahms são insubstituíveis. E as suas “Peças Líricas”, de Grieg, são uma imagem da felicidade da qual não fez esfumar em definitivo o lastro do remorso. Faleceu há 30 anos. Se reincarnasse, como contou à autora de “Great Contemporary Pianists Speak for Themselves”, Elyse Mach, “queria fazer tudo outra vez, só que melhor”. “Mas se soubesse que não tornaria a viver?”, perguntava-lhe ela. “Bem, nesse caso deixo para trás as minhas gravações”, respondeu. “Se valerem de alguma coisa, continuarei vivo.” E assim é.
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