Helen
Keane recordava o instante em que conheceu pessoalmente Bill Evans: “O Gene
Lees achava que eu devia agenciar o Bill e levou-me a ouvi-lo no Village
Vanguard. Apresentou-mo e a verdade é que simpatizámos logo um com o outro”,
conta ela com a maior das naturalidades em “Stormy Wheather: The Music and
Lives of a Century of Jazzwomen”, de Linda Dahl. Lees, que na altura namorava
Keane e vinha de largar o cargo de editor na Down Beat, confirma-o nas cruentas
notas de apresentação que escreveu para a caixa com a integral do pianista na
Fantasy mas dispõe o matiz de outra forma: “A Helen era uma das managers mais capazes do meio artístico,
com um papel preponderante no arranque das carreiras de Harry Belafonte ou de Marlon
Brando. Levei-a a ver o Bill. ‘Oh, não,’ diz ela, para aí ao fim de 16
compassos, ‘este não – este pode vir a partir-me o coração’. Quão profético foi
esse seu reparo.” Bill Evans trabalhou com Helen Keane, que entretanto se tornou
produtora dos seus discos, de 1962 até 1980, o ano em que morreu. De modo
lapidar, Lees chamou-lhe “o mais longo suicídio da História”.
São
relações que agora saltam à memória. Aliás, quando a Riverside se afundou, foi Keane
quem conduziu Evans à Verve lançando-lhe uma boia de salvação. E a escolha de
temas como ‘What Kind of Fool Am I?’, ‘Everything Happens to Me’ e ‘Why Was I
Born?’ para a última sessão de estúdio na editora de Orrin Keepnews, fixada a
10 de janeiro de 1963 mas lançada vinte anos mais tarde, em “The Complete
Riverside Recordings”, ilustram bem o estado de espírito de Evans no momento. Em
1983, nas notas que redigiu para “The Interplay Sessions”, outro título com material
de arquivo, Keepnews foi perentório: “Era eu que assinava os cheques na
Riverside. E, dada a sua constante necessidade de liquidez, não era fácil
ser-se ao mesmo tempo amigo, produtor e editor do Bill. Não gostava da ideia de
registar música sem intenção de a editar. Mas ir acumulando datas, fazendo-lhe
adiantamentos, era a única opção ao nosso alcance. Não fosse o seu problema,
não creio que alguma vez tivesse gravado estes álbuns.”
Fala-se
de algo a que Whitney Balliett aludiu num texto perspicaz para a The New
Yorker, depois integrado em “Goodbye and Other Messages: A Journal of Jazz,
1981-1990”: “Quando tocava, afastava-se uns centímetros do piano, com as costas
completamente dobradas para a frente e a testa a roçar o teclado. Mantinha as
mãos planas, e durante a década final da sua vida raramente as desviou do
registo intermédio, como se estivessem invisivelmente atadas ao Dó central.
Esta postura abjeta, quase oratória, sugeria uma série de coisas: que Evans
estava a prestar homenagem ao seu instrumento; que estava tão debilitado pelo
consumo de drogas que não se conseguia pôr direito; que vivia subjugado pela
timidez. Esta última era provavelmente verdade, e produzia um estranho efeito numa
forma de tocar que permanecia uma disputa entre o desejo intenso de praticar
uma música totalmente privada e o idêntico desejo intenso de expressar a sua
alegria por ter encontrado semelhante música dentro de si.”
E
dir-se-ia que a sua associação à Verve, não obstante a repetição em triplicata
de qualquer testemunho seu (a qual, em 1997, deu origem aos indiscretos 18 CD
de “The Complete Bill Evans on Verve”) e ter de lidar com um comité composto
por Lees, Keane e Creed Taylor (que administrava o pagamento da sua renda de
casa e das suas contas da água, telefone, gás e luz só para evitar pôr-lhe
dinheiro vivo no bolso), resultou numa fase de enorme contentamento a fazer
aquilo de que mais gostava. “5 Original Albums” remete para aí e reúne “Trio
64” (com Paul Motian e Gary Peacock), “A Simple Matter of Conviction” (de 1966,
com Shelly Mane e Eddie Gomez), “Further Conversations with Myself” (de 1967, a
solo), “At The Montreux Jazz Festival” (de 1968, com Gomez e Jack DeJohnette) e
“What’s New?” (de 1969, com Jeremy Steig, Gomez e Marty Morell). É uma seleção
tão boa como outra qualquer, quiçá determinada pela disponibilidade atual destas
referências no mercado fonográfico, embora, resumindo-se a fac-similar originais,
não inclua as faixas extra que reedições anteriores trouxeram a lume. Mas cá
está o coloquialismo do costume, a mesma dedicação a aspetos triviais do songbook e uma equivalente obrigação de
experimentar com fórmulas estafadas, a transferência para a relação entre
tónica e dominante das complexidades da vida em casal, a capacidade de inovação
que só relutantemente se lhe reconhecia, improvisações que mostram nos standards o que exames de raios-X põem a
nu em quadros famosos.
Também “Some Other Time”, em oportuno resgate aos baús da
MPS, invoca o período – e o engenho de Keane, pois com a saída de Taylor para a
CTI desaparecia um aliado seu na Verve e havia que fazer pela vidinha, não obstante o ressurgimento de Keepnews na Milestone ter acabado por tornar supérflua a associação do seu agenciado a qualquer outra editora – através
de uma gravação inédita de Evans, Gomez e DeJohnette captada cinco dias após o
concerto do trio em Montreux, para o qual, por sinal, tinham sido convidados por
intermédio de Gene Lees. Nem de perto, nem de longe, se ultrapassava a inadequação
do baterista ao papel que tinha de desempenhar, mas um terço dos temas (em duo
com Gomez) aproxima-se da excelência e, contrariando Balliett, as extremidades
do piano estão menos entregues ao cotão, revelando um Evans inquieto, de um
lirismo ainda mais magoado. Fez-lhe bem passar pela Floresta Negra (a MPS tinha
sede em Villingen) e, ao que tudo indica, e pelo menos Gomez e DeJohnette assim
o garantem, ao longo de um mês de residência no Ronnie Scott’s este trio veio a
cumprir o seu potencial. Há aqui, até, uma ‘Turn Out the Stars’ que aponta já
nesse sentido, bela e desencantada, capaz de lembrar um poema de Thomas Hardy,
que Evans tanto lia, em que o brilho das estrelas serve apenas para sublinhar a
falta que a luz faz na Terra.
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