Num depoimento recolhido por
Misha Aster, produtor executivo deste “Transcendental”, vem agora Trifonov
dizer-nos, à cautela, que Liszt era como o homem moderno, “consciente da
extrema complexidade – e inclusivamente das contradições – da sua vida e das
suas experiências”. Já em maio de 1865, no seu diário romano, como é costume
lembrar-se, o historiador Ferdinand Gregorovius havia sido menos discreto: “Ontem
avistei Liszt, em traje de abade; descia de uma carruagem de aluguer hackney, a sua batina preta de seda ironicamente
volteando atrás de si, como Mefistófeles mascarado de monge.” Mas a intenção de
ambos é semelhante: tornar a incoerência do virtuoso equiparável àquela espécie
de fenda que se adivinha no destino da humanidade e que a figura do anjo caído
tão bem representa. Também nas cartas se diria estar o encontro de Trifonov com
a obra do húngaro. Ou, pelo menos, desde há coisa de cinco anos, quando Martha
Argerich, em Lugano, comentou com o enviado do “Financial Times”, Andrew Clark,
que o jovem pianista russo tinha “tudo e mais um pouco” para vingar, que “tecnicamente
o que ele faz com as mãos é incrível”, que o seu toque é ao mesmo tempo “meigo
e dotado de um elemento demoníaco” e que nunca tinha ouvido nada assim. Falando
sobre Trifonov, Argerich trazia precisamente à memória o que Charles Hallé
escreveu acerca de Liszt depois de assistir a um recital seu: “Não há para si qualquer
dificuldade de execução, convertendo-se o extraordinário em mera brincadeira de
crianças. Um dos méritos mais transcendentes entre os que o distinguem é a
capacidade de manter uma pureza de som absolutamente cristalina até nas mais
complicadas e, para os demais, impossíveis passagens”. Outro tanto pode
afirmar-se do que Trifonov aqui faz com “Estudos de Execução Transcendental”,
“Grandes Estudos de Paganini” e “Estudos de Concerto”. O que é o mesmo que
dizer que toca Liszt de modo vagamente anacrónico, com aquela transparência de
madrepérola de que nem Arrau (1976) – ou menos ainda Berman (1963) – se
aproximou. O resultado pode ser demasiado poético para alguns, mas é o que se
espera quando hoje se abordam peças que concentram em si muito do fulgor e um
pouco do vulgar do que Trifonov considera “representações dinâmicas das
experiências espirituais de uma alma romântica”.
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